quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

Dilemas Contemporâneos da Cultura (105)





O mundo continua precisando de poesia.

Em 2011, escrevi um texto para um site (que não mais existe) colocando em discussão e me colocando a favor de um projeto que envolvia a produção e publicação na internet de 365 vídeos (um para cada dia do ano) em que a cantora Brasileira Maria Bethânia interpretava poesias de vários autores e, de quebra, falava um pouco sobre a agressividade de determinadas opiniões. 
Levei "pau" como se diz. Várias pessoas publicaram justificativas contundentes e opiniões tão absurdas e tão despreparadas que não me restou outra coisa a não ser pacientemente rir de tudo aquilo. 
A questão na época e que prevalece até hoje é quanto ao direito de qualquer empresa pleitear recursos públicos para a realização de projetos na área da Cultura dentro das regras vigentes. Além disto, também remexo na maneira como muitas opiniões são oferecidas sem que se tenha uma base sólida de conteúdo para sua fundamentação. 

Para resumir, o tempo passou. O Brasil não ganhou as poesias recitadas pela Bethânia gratuitamente. O Brasil perdeu, a poesia perdeu, a Língua Portuguesa perdeu, os leitores perderam, os jovens deixaram de ter uma referência concreta e permanente da poesia no Brasil. 

Mas, felizmente há sempre um mas, Bethânia conseguiu editar um magnifico livro de poesias e um precioso dvd. Veja a edição da Editora UFMG e compre pelo menos dois exemplares do livro: um para você e outro para um amigo.  

Para quem não leu em 2011 ou para quem quer recordar, não tendo encontrado o link do site original, segue o texto que publiquei na versão da época:

O mundo precisa de poesia
Convenhamos que é uma ótima ideia “produzir e alimentar um blog durante um ano, com publicação diária de vídeos inéditos; atrair aproximadamente 6.000 (sic) visitantes diariamente; estimular a formação de público de leitores; estimular a discussão, na rede, sobre poesia e literatura; propiciar o contato e interação de jovens com literatura brasileira; estimular artistas de diferentes áreas a produzir conteúdo baseado em poesias e textos; produzir material audiovisual de grande qualidade técnica e artística; reunir uma equipe altamente capacitada e experiente para realizar o projeto; multiplicar resultados, estimulando o compartilhamento do conteúdo dos vídeos em outras redes, como YouTube, Facebook, Twitter e Orkut”.

Originada dos calendários destacáveis com frases e imagens diárias, a ideia de postar na internet vídeos diários gratuitamente, com uma artista do quilate da cantora Maria Betânia e em paralelo promover a discussão e a difusão da poesia sob todas as formas, é um pequeno ovo de Colombo.

Aí está uma ideia que eu gostaria de ter tido.

Junte-se a isto uma produtora (Conspiração) de reconhecido e exemplar portfólio. Temos então um projeto cultural na lei do audiovisual bem-sucedido?

Não. Antes falta o dinheiro que só virá se os produtores conseguirem convencer alguma empresa a apoiar o projeto repassando parte do seu imposto a pagar.

Bastou, no entanto, que se divulgasse a aprovação do projeto pelo Ministério da Cultura e sin sala bin, num passe de mágica, tivéssemos uma enorme e furiosa batalha na internet com acusações, insinuações, discordâncias. Mágoa, muita gente magoada. Muita inveja. Um sofrimento de fazer dó. Palavrões no twitter xingando a cantora, ministro da Cultura, ódio represado.

É assustador. Tem alguma coisa muito errada neste processo.

Desde quando a cultura no Brasil não precisa de incentivos e apoio do Estado? Tente qualquer um ir a uma empresa e oferecer um projeto cultural qualquer sem incentivo e veja se consegue.

Pode ser até que a Maria Betânia e a Conspiração Filmes consigam convencer agências e empresas e patrocinarem o blog com verbas próprias. Ótimo. Seria maravilhoso para a cultura e para a poesia.

E qual o problema do recurso ser incentivado? Neste caso, deve ser incentivado porque basta olhar o que as empresas – o mercado – têm feito pela poesia no Brasil. Perguntem aos poetas o quanto de dinheiro conseguiram privadamente para viabilizar suas ideias nos últimos 20 anos.

Além das suposições de praxe das relações entre a cantora irmã* e a ministro irmã*, insinuações de protecionismos, a guerrilha também põe em xeque os valores apropriados no projeto, colocando no rol das atividades criminosas ganhar-se dinheiro com o sucesso, com o resultado de anos de trabalho.

Vamos a uma curta análise. Quanto representa de trabalho pesquisar e definir 365 poesias, selecionar trechos, estudar o autor, estilo, atmosfera proposta por poema, definir 365 diferentes interpretações, estudar decorar e ensaiar algo em torno de 1.095 minutos de texto (18 horas aproximadamente)? Quanto representa de trabalho responsabilizar-se por tudo isto mantendo padrões de qualidade, acompanhando as intermináveis horas de edição, de pós-produção? Quanto representa a associação da imagem pessoal da artista ao projeto?

As perguntas acima referem-se exclusivamente a questões de direção artística do projeto.

Pois bem. Várias pessoas criticaram os valores atribuídos ao trabalho da intérprete e diretora. Houve até quem dissesse que se fosse outro nome, o projeto não seria aprovado. Ou ainda que o valor é muito alto e que a cantora não vale isto. A fila de absurdos vai além, discutindo-se inclusive se os prazos de dedicação ao projeto valem isto ou aquilo. As mesmas pessoas que aceitam com tranquilidade o valor da marca de um refrigerante, ou de um tênis famoso, são incapazes de atribuir valor à “marca” de um artista, ao seu valor simbólico e, por que não, o seu valor comercial.

Observe como é complexa a questão. Trata-se de discriminação ao contrário. Os críticos da iniciativa fazem uma inversão doentia argumentando que é protecionismo, que o projeto não se sustentaria com um nome desconhecido – este sim merecedor de apoio. Reprovam/condenam o fato concreto da aprovação do projeto lastreado num nome conhecido de inquestionáveis méritos artísticos, de ligação pessoal com a poesia e merecedor de remuneração justa pelo valor que agrega ao projeto. Nesta maneira de pensar, preferem deixar de lado o que é bom, responsável, reconhecido, meritório e valorizar o que é duvidoso, desconhecido. Os críticos desta iniciativa esquecem que também na cultura há um processo em curso. O que é novo deve ser incentivado na medida do seu tamanho.

Há poucos dias recebi um comentário discordando de um texto que publiquei onde ressaltava serem necessários cursos de preparação de gestores que considerem os princípios gerais da economia, da administração pública, acrescentando que, mesmo cumprida esta etapa, precisaríamos dar tempo a estas pessoas adquirirem experiência/vivência de gestão. Para alguns, basta um indivíduo fazer um curso e estar pronto para ser gestor de um projeto, uma empresa, um órgão governamental. Parece que não entra na cabeça das pessoas que maturidade artística, administrativa é importante e que, sobretudo na atividade cultural, erudição se obtém pela experimentação, repetição, aprendizado.

Talvez a velocidade com que as coisas acontecem na nuvem levem a estes julgamentos apressados. Talvez a falta de balizamento, a falta de quem diga o que é certo ou errado, do que é bom ou ruim, leve alguns a dizerem o que primeiro lhes passa pela cabeça. Devem também existir outros que, sem qualquer pudor, criam ou aproveitam a onda para fazer prevalecerem seus próprios interesses, mas isto é outra história.

O foco aqui é este fenômeno de distorção de valores, do exagero na crítica, do excesso raivoso.

Situação semelhante acontece com o tsunami envolvendo o jovem cartunista João Montanaro, 14 anos, e sua charge publicada no dia 12/3 na Folha de São Paulo.

Ao desenhar uma onda devastando uma cidade japonesa, escolhendo como tema/modelo uma xilogravura de Katsushika Hokusai criada entre 1830 e 1833, o cartunista foi alvo de elogios, mas de críticas de leitores, sendo inclusive xingado por colegas na escola onde estuda.

Como publicado na FSP de 17/3, o pesquisador Gonçalo Júnior, autor do livro “A Guerra dos Gibis”, “vivemos na era da chatice e do politicamente correto. É uma reação paranoica, o desenho retrata as mesmas coisas que todos estes vídeos que estão no YouTube”.

Neste caso, o mais provável é que os críticos não conseguiram atingir o nível de leitura proposto pelo desenho. Para entender o que foi feito é necessário um mínimo de alfabetização para as artes e a capacidade de perceber que o cartunista pegou um ícone da arte japonesa, justamente uma gravura representando uma onda e acrescentou destroços. Por pura ignorância, alguns furiosos não o condenaram por plágio. Definitivamente aquele não era um trabalho de humor e esta foi a leitura rasa que levou à condenação do autor.

Ou seja, este caso e o outro são situações diferentes, mas a mesma matriz de falta de bom senso, de excessos desnecessários.

O projeto cujo título é o mesmo deste artigo, é bem-vindo. O mundo precisa mesmo de poesia.

Quando a argumentação é baseada em berros, não há o que contra argumentar. Quando uma sociedade começa a espernear aos chutes e pontapés é recomendável o recuo, sob o risco de todos colocarem a mesma carapuça de burrice dos que fazem a crítica. 


(*) a cantora é irmã de Caetano Veloso e a Ministro era Ana de Holanda, irmã de Chico Buarque, duas figuras polêmicas e hoje frequentemente associadas a questões de ordem política. Ressalto que este texto se refere fundamentalmente à perspectiva de que qualquer artista pode (e deve) ter o direito de se valer de recursos públicos para executar seu trabalho. Se há alguma falcatrua, má utilização de recursos existem instrumentos legais para verificar isto. Também ressalto que a análise em questão nada tem a ver com as posições políticas e pessoais dos citados e não estão em xeque as eventuais discordâncias nesta área entre eles e este autor.

sábado, 2 de janeiro de 2016

Diálogos Contemporâneos da Cultura (104)


Máscaras " A ópera em São Paulo hoje - por CP
(*) extrato de Hamlet, de William Shakespeare, em tradução de Bárbara Heliodora (in memoriam)



Reflexões sobre as consequências e as inconsistências do que representa a acusação de desfalque de R$18 ou R$20 milhões do orçamento do Theatro Municipal amplamente difundida pelos veículos de comunicação em reportagens recentes. Qual a sua origem, seu significado e efeitos na percepção pública da nossa categoria?
Parte VII

Cheguei ao fim (?) destas primeiras reflexões. Sem concessões. Hora de ler e reler. Eventualmente, acrescentar, modificar um ou outro detalhe. Mas em outro texto, porque estes precisam ficar como estão. 

Em algum lugar deste blog já mencionei T.S. Eliot, George Steiner e Mario Vargas Llosa, autores de pensamentos críticos acerca da Cultura. De Steiner, tomo emprestado que "não é uma jogada retórica insistir que estamos em um ponto no qual os modelos da cultura e dos acontecimentos anteriores são de pouca ajuda... No máximo podemos tentar por em evidência certas perplexidades". A observação de Steiner sobre o título do seu próprio ensaio também serve para o meu propósito nestas considerações: mesmo a frase "reflexões sobre as consequências e as inconsistências do que representa..." é ambiciosa demais e talvez haja apenas esperança neste pequeno exercício.  

Infelizmente, esta vulnerabilidade a que se expos o Theatro Municipal não é responsabilidade nem prática esperada dos profissionais de ópera e teatro no Brasil. Pelo contrário, tenho orgulho de pertencer a um grupo de profissionais que é sério, responsável, preocupado com o bom uso dos recursos públicos, que possui uma visão apaixonada sobre sua atividade, mas uma visão pautada no compromisso com o público, com a difusão, com a formação.

Sem pieguices, estou entristecido, com esta história toda. Uma melancolia impotente ao perceber a evidência de certos fantasmas perenes e intoleráveis. Triste. 

É da natureza do ser artístico certo distanciamento para melhor observação da realidade. Se tomamos partido aqui ou ali, essencialmente queremos à nossa maneira ser críticos de nós mesmos e mostrar isto para quem nos vê.

Alguns de nós temos a dimensão exata de que não há dinheiro que pague a cultura que não tenha como origem aqueles que nos assistem. A origem dos nossos recursos é o próprio ingresso ou os impostos que direta ou indiretamente financiam a atividade cultural. É a este grupo que pertenço: aos artífices da cultura e aos que também modestamente pagam a cultura.

Por isto tudo, não posso, não podemos, aceitar passivamente fatos como estes que se repetem, repetem, repetem em maior ou menor escala e que se agravam com o passar do tempo. Estamos vivendo um momento novo. Hora em que precisamos mudar o verbo de "ouvimos falar" para "sabemos que". 

Para o bem da Cidade, do público, da manutenção da confiabilidade no que fazemos, precisamos obter respostas rápidas dos organismos que se debruçam sobre o tema. Mas também temos que dar respostas rápidas. 

Não podemos carregar sob nossos nomes o estigma de sermos criadores de um gênero caro, impagável, irresponsável com os números, quando sabemos que existem no Brasil todas as condições técnicas e criativas para se desenvolver a ópera de maneira saudável financeiramente e de se criar em níveis de excelência, com custos menores, inclusive com artistas estrangeiros compondo equilibradamente parte do elenco.

Não tenho escrúpulos ao dizer que não aceito ser avaliado por patrocinadores, por gestores, muito menos pelo público, sob esta régua. Por esta razão, tomo como certo o famoso verso de Hamlet que ilustra este post. 

Precisamos, sob o risco de não termos o que escrever sobre nossa própria história recente, urgente reavaliação do que consideramos correto, adequado e desejável para nossas vidas e caminhos profissionais. 

Nós, até aqui, definitivamente, não fizemos o melhor que sabemos fazer. Basta olharmos os programas dos teatros de ópera e observarmos os nomes que estão fora deste circuito redutor e perverso criado, em que comemoramos três quando já fizemos quinze. Quantos bons regentes, quantos bons cantores, quantos bons diretores, quantos bons cenógrafos, quantos bons figurinistas, quantos bons iluminadores, quantos bons gestores, quantos bons estão em suspensão numa bolha cataclísmica? 

Se todos não percebermos que a lógica em curso não interessa à nossa atividade e não agirmos rápido para convencer aqueles que nos financiam que estamos  na contra-estratégia do desenvolvimento cultural, estaremos prestando um desserviço às nossas mais óbvias expectativas






Diálogos Contemporâneos da Cultura (103)


Máscara "A ópera em São Paulo hoje" por CP
(*) fragmentos de Hamlet, de William Shakespeare em tradução de Bárbara Heliodora (in memoriam)


Reflexões sobre as consequências e as inconsistências do que representa a acusação de desfalque de R$18 ou R$20 milhões do orçamento do Theatro Municipal amplamente difundida pelos veículos de comunicação em reportagens recentes. Qual a sua origem, seu significado e efeitos na percepção pública da nossa categoria?

Parte VI



A gestão anterior (2009-2012) da Secretaria de Municipal de Cultura criou as bases para a Fundação do Theatro Municipal, de fato sendo implantada com todas as dificuldades naturais nesta nova administração municipal a partir de 2013.

Infelizmente, no entanto, mesmo que isto não tenha sido de conhecimento do grande público do Theatro, a gestão foi assaltada por notícias indesejáveis em várias direções: cancelamentos de produções previamente acertadas; demissões em vários escalões e contratações de estrangeiros em diversos níveis de atuação e posteriores problemas internos que levaram a demissões destas mesmas pessoas; substituição de equipes inteiras do teatro nas áreas técnicas; tentativa de acabar com o Coral Paulistano o que levou a uma exposição absolutamente desnecessária do TMSP e seus grupos artísticos; extrema lentidão na regularização dos contratos de grupos artísticos fixos; atrasos de pagamento de artistas estrangeiros em prazos nada razoáveis para um organismo deste porte; demissões e recontratações de demitidos; manifestos públicos de artistas estrangeiros quanto a práticas artísticas e de relacionamento na direção da casa, com ameaças de processos judiciais; manifesto de músicos da orquestra contra práticas de relacionamento da direção da casa, entre outras questões.

Ou seja, não houve – pode-se dizer – uma gestão pautada no equilíbrio e serenidade. Pelo contrário, as más noticias relativas aos processos administrativos e artísticos sempre foram tônica constante. Até mesmo questionáveis supostos padrões de qualidade, relativizados por elevados custos de contratação e de produção.

Não faltaram, portanto, sinais públicos para que a Prefeitura implantasse mecanismos de controle sobre os contratos com terceiros e sistemas de pagamento e de gestão.

Se é a OS quem paga, se o Diretor Artístico e equipe define quem contratar e por quanto, como não podem estar todos estes arrolados nos mesmo pacote de suspeitos, quando, como noticiado, segundo a Promotoria, “existem provas do esquema fraudulento envolvendo a contratação de artistas, que teria movimentado cerca de R$ 20 milhões”?

É esperado que Controladoria Geral do Município e o Ministério Público Estadual, dois órgãos de sabida competência, apurem e deem publicidade aos resultados obtidos, identificando os níveis de envolvimento interno nos dois organismos, quais os produtores externos envolvidos e até onde se estendem estas praticas.

Num espectro mais largo, espera-se que se investiguem as relações contratuais com agentes estrangeiros, como se deram e em que valores; pela intangibilidade, como foram as contratações de serviços especificamente nas áreas de cenografia, de figurinos, as locações de equipamentos; como estão sendo tratados os acervos de ópera, as produções em parceria ou doadas por teatros estrangeiros, as locações de produções; a maneira como foram obtidas receitas de bilheteria, vendas de programas, assinaturas, doações, locações para eventos, seus mecanismos de controle e o destino dado a estes valores, certamente expressivos, já que a própria administração sempre anunciou estarem todas as apresentações lotadas; como se deram as captações de patrocínio face a legislação vigente e, também nestes casos, como foram remunerados artistas, técnicos, serviços, se houve duplicidade de pagamento de contratos comparados aos orçamentos e projetos realizados.

Infelizmente, tudo isto é necessário para que não fiquem dúvidas sobre quaisquer pessoas que tenham trabalhado nesta atividade no TMSP e se dê um basta a qualquer especulação a respeito. 



sexta-feira, 1 de janeiro de 2016

Diálogos Contemporâneos da Cultura (102)


Máscaras " A ópera em São Paulo hoje" - por CP
(*) extrato de Macbeth, de William Shakespeare, em tradução de Barbara Heliodora (in memoriam)




Reflexões sobre as consequências e as inconsistências do que representa a acusação de desfalque de R$18 ou R$20 milhões do orçamento do Theatro Municipal amplamente difundida pelos veículos de comunicação em reportagens recentes. Qual a sua origem, seu significado e efeitos na percepção pública da nossa categoria?
Parte V


Quanto mais a gente pensa... Vejamos tudo isto sob outro prisma.

Vinculada estatutariamente à Secretaria Municipal de Cultura, a Fundação do Theatro Municipal é uma fundação de direito público administradora de bens de sua propriedade e de recursos públicos, criada para realizar políticas públicas para a Cidade de São Paulo. 

Foi um grande desafio para a Cultura em São Paulo a criação da Fundação na gestão do Secretário Carlos Augusto Calil, uma solução muito esperada e que se pretendia regularizasse o funcionamento do teatro, com a efetivação dos corpos artísticos, além de melhoria considerável nos processos de contratação, inclusive dando transparência aos procedimentos. Houve certa reticencia quanto ao modelo de fundação ideal, de direito público ou privado, mas uma concordância geral com o ganho considerável a favor da ópera em qualquer dos casos. De fato, acho que a de direito público, como acabou acontecendo, seria um pouquinho mais complicada, porém longe de ser impeditiva de se fazer um bom trabalho no teatro. Haveria um degrau a mais de intermediação, mas absolutamente administrável e, conduzido o processo com seriedade e transparência, poderia ser muito saudável. O Calil conseguiu dar um passo fundamental para o futuro do teatro e isto é inegável.  

Criada a Fundação, coube ao governo seguinte a estruturação e dar prosseguimento ao processo de implantação. 

A Fundação constituída, possui como equipamentos o Theatro Municipal de São Paulo e a Praça das Artes, os corpos artísticos da Sinfônica Municipal, o Coro Lírico, o Quarteto (de Cordas) da Cidade, o Balé da Cidade, a Orquestra Experimental de Repertório e o Coral Paulistano Mário de Andrade. A estes se acrescentem programas, a Escola de Música e a Escola de Dança. Não podemos esquecer da Central Técnica que, teoricamente, deveria construir e armazenar cenários e figurinos das produções do conjunto, uma atividade dificílima e um delicado nó para o desejo de se fazer um teatro de repertório.

A Fundação põe em prática as politicas públicas de Cultura nesta área com repasses de valores do orçamento municipal a ela destinados, para uma Organização Social (OS) com quem mantem contrato de gestão aditáveis (conforme necessidades, aumentos de orçamento) para que de fato esta se tornasse a responsável pelo pagamento de salários dos grupos artísticos, do diretor artístico do teatro, custos de produção dos espetáculos, de programas específicos gerados pelos grupos artísticos, de serviços referentes à estrutura dos equipamentos (prevenção de incêndio, limpeza, conservação e outras). 

A OS tem uma relação de subordinação contratual com a Fundação a quem deve prestar contas. Mas, no espírito das próprias organizações sociais, ela possui relativa autonomia para cumprir suas metas previstas em contrato e obter recursos adicionais de patrocínios etc. 

É na OS onde são feitos os orçamentos e contratações definidos pela Direção Artística e onde são mantidas as relações nacionais e internacionais com artistas, técnicos, cenógrafos, figurinistas, agentes, produtores etc.

Pelo contrato de gestão, a Organização Social é permissionária do uso e responsável pela administração e gestão do Theatro Municipal e da Praça das Artes, bens cuja propriedade é da Fundação Theatro Municipal de São Paulo. Uma tarefa nada simples como se vê.


Não devemos fazer julgamentos apressados, nem condenar pessoas sem que lhes seja dado o direito de defesa.  Históricos pessoais também precisam ser levados em conta. Mas não é esquisito que nada tenha sido dito, de imediato, sobre a tal Organização Social nestas informações que até agora vieram a público? Como os processos de governança não conseguiram detectar os tais ilícitos anunciados? 

quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

Diálogos Contemporâneos da Cultura (101)

Máscara "A ópera em São Paulo hoje"- por CP

Reflexões sobre as consequências e as inconsistências do que representa a acusação de desfalque de R$18 ou R$20 milhões do orçamento do Theatro Municipal amplamente difundida pelos veículos de comunicação em reportagens recentes. Qual a sua origem, seu significado e efeitos na percepção pública da nossa categoria?

Parte IV


Não quero passar dos limites, por que o exagero pode parecer desrespeitoso, maledicência, pode ser traduzido por inveja ou corruptelas de caráter que não me dizem respeito.

Mas, não passando dos limites, fica difícil acreditar que a ópera La Bohème, a ser reposta pelo teatro, venha a custar um milhão, novecentos e oitenta reais, como divulgado pelos veículos de comunicação, mesmo com moedas estrangeiras nas alturas. Por que, se o cenário* já construídorestringe-se a um quadrado de uns 4m x 4m ou 16 m², constituído de algumas peças de mobiliário, com um bonde cenográfico fixo em um dos atos, e alguns elementos de cena e, portanto, com reduzido custo de reparos, se necessários? Com cenários prontos, com luz possível de ser feita com os equipamentos que o teatro possui, com uma sonorização mínima, com sistema de legendas já pago, sem qualquer dificuldade na caracterização, com figurinos já executados, com eventualmente um ou outro ajuste realizado internamente, sem custo adicional de orquestra e de coro, sem necessidade de contratação  com elenco nacional de excelente padrão, perfeitamente contratável, por que um valor tão elevado?

Mesmo que justifiquem este orçamento, não é sadio para a atividade, não é criativo, não é inteligente, não é aceitável à luz das próprias dificuldades por que o teatro alegadamente passa.

Um amigo, contador, com quem conversei, ponderou que “como contabilista, não tenho por que, nem como julgar o interesse artístico, a qualidade – palavrinha abstrata – de um trabalho deste, mas como deve ter pensado o Controlador do Município, somando todos os números que se fala aqui e ali, a conta não bate. Alguém tem que explicar isto”.

Vamos ao ponto. Voltemos ao contrassenso com que comecei esta série de reflexões.

Não é um absurdo, um total contrassenso, um abuso da nossa capacidade de discernimento, que a Prefeitura venha a público dizer que só acionou a Controladoria Municipal depois que o Diretor Artístico do teatro, um empregado de altíssimo escalão, magnificamente remunerado para não criar nem levar problemas, comentou com o prefeito que havia algum problema na gestão? Soma-se a isto a Prefeitura afirmar ter agido, somente após o pedido de demissão de outro diretor quando este alegadamente disse ter saído por “divergências pessoais, interferências exteriores ou o embate entre visões distintas”?

Algo não bate, como diria meu amigo contador. 

(*) Quando vi o espetáculo, levei um susto quando a cortinas se abriram. Levei um cutucão "mediúnico" com a cenografia incrivelmente parecida com a que desenhei em 2010 para a produção de La Bohème na nossa Companhia itinerante. Por incrível que pareça, a mesma utilização do espaço delimitado por um quadrado, em medidas incrivelmente parecidas, com o mobiliário teatral utilizando os mesmos elementos que criei para nossa montagem. No nosso caso, um quadrado delimitador do espaço "não teatro" como desejei para o espetáculo. Sem pretender ser crítico, gosto mais da nossa encenação que, embora seja um texto "curto", possui uma dinâmica mais ao espírito da juventude com que vejo os personagens. Gosto também da maneira como os objetos de cena se transformam em outros numa dinâmica muito particular da nossa Companhia. Não sei quem criou o cenário da Bohème do Municipal e esta é uma demonstração de como uma boa ideia quando está no ar, pode ser utilizada por dois artistas que não se conhecem, mas que têm convergências criativas.

quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

Diálogos Contemporâneos da Cultura (100)

Máscara "A ópera em São Paulo hoje"- por CP


Reflexões sobre as consequências e as inconsistências do que representa a acusação de desfalque de R$18 ou R$20 milhões do orçamento do Theatro Municipal amplamente difundida pelos veículos de comunicação em reportagens recentes. Qual a sua origem, seu significado e efeitos na percepção pública da nossa categoria? *
Parte III


As atuais denúncias públicas de desvios de dinheiro feitas pela Controladoria Geral do Município e do Ministério Público Estadual são muito ruins para o Theatro Municipal de São Paulo (TMSP). Como se trata de uma atividade realizada coletivamente, não dá para imaginar que os supostos desvios sejam calculáveis como probabilidade sujeita a variáveis aleatórias independentes, mas como resultado de mecanismos interdependentes.

Quem decide custos, negocia contratos, define elenco com agentes e produtores, não participa, não sabe dos processos de contratação como foi dito nos veículos de Comunicação?

Como assim? Um diretor artístico de qualquer teatro do mundo tem a responsabilidade – a obrigação – sob pena de ser dito incompetente e incapaz – de conhecer os custos que o teatro está pagando. Para isto, além das atribuições diretas, possui uma equipe que trabalhando sob normas, lhe oferece, na melhor dos modelos, alternativas confiáveis. É sua responsabilidade decidir o que será feito e até dizer quanto está disposto a pagar para ter este ou aquele resultado. Não se trabalha numa ilha criativa imaginando que tudo dá. É dá função trabalhar sob pressão de custos, fazer mais com menos, planejar, desenvolver, criar, negociar.

E não atribuam incapacidade de gestão a tamanho de ego. A ópera já teve, no passado, alguns poucos casos  de ególatras possessos que relativamente deram certo. Claro que isto, no passado.  

Não venham dizer que para fazer alguma coisa é preciso ser controverso, provocativo ou outros adjetivos desta natureza. Para ficarmos apenas na ópera, se usarmos esses adjetivos para alguns gestores, parodiando Suassuna, que adjetivo usar para aqueles que realmente têm feito a diferença nos seus teatros em outros países? Aqueles que além de provocação e controvérsia criativa, atuam com austeridade e rígido controle orçamentário, em situações de crise econômica, social e politica e, produzindo como nunca, sabendo que ampliar a ação cultural é desejável e necessário quando as ameaças à sociedade são visíveis. 

Temos que gritar no meio da arena: “Estamos no século 21”!

Como nos satisfazermos com um modelo que transforma um Teatro Monumento em algo circunscrito a pouco mais que uma ou duas quadras no centro da cidade, incapaz de ampliar suas possibilidades, de atender a missão de Estado servidor que um equipamento desta dimensão possui? Não é disfarçando sua ação com meia dúzia de bons cantores fazendo o melhor de si num terminal de ônibus que se fará isto. Está errado.

As matérias recentes, com anúncios de reduções e retomadas de temporadas, com menções de orçamentos diferentes, com projeções de custos inconsistentes entre si, não soam como algo sério, ou que deva ser levado a sério.

Não é possível imaginar que – transformados em fontes – os jornalistas responsáveis pelas matérias publicadas até aqui não sejam sérios e capazes de reportar corretamente o que ouviram. Estou com eles nisto e não acho aceitável que se atribua a especulação da mídia qualquer questão que contrarie os desejos pessoais dos envolvidos. Garanta-se sempre o direito de defesa - isto é inabalável, mas preserve-se a liberdade de investigação e de opinião, principalmente numa questão tão delicada e sensível para milhares de profissionais em todo o país. Ah, sim. A ópera possui no Brasil mais de 5.000 pessoas potencialmente envolvidas direta ou indiretamente na formação, criação e produção. É pouco. Por enquanto. 

O orçamento do TMSP divulgado gira em torno de cento e tantos milhões de reais, um número que não é preciso e variou conforme o aumento da crise econômica e alterações entre a expectativa x captação real de recursos via leis de incentivo. Na última versão, simultaneamente à venda de assinaturas, foi anunciado que a temporada de 2016 terá apenas 3 novas produções de espetáculos e uma reposição. Para quem não sabe, reposição é a retomada de uma produção pronta do passado e sua reapresentação na nova temporada. Como em 2015, antes do comunicado do desfalque, houve cancelamento de apresentações tendo problemas de orçamento como justificativa, a situação é agora mais grave.



(*) Quando comecei este blog há alguns anos, publiquei na apresentação que "entre outras coisas, escrevo sobre Cultura. Sempre que possível, ponho em discussão temas gerais da atividade cultural, estimulando a discussão sobre a Cultura erudita e os mecanismos de alfabetização para as artes. O foco profissional é a Ópera, a Música Erudita, o Teatro e a Difusão Cultural. Acredito na convergência entre as artes, na independência de pensamento, no diálogo, na negociação franca, na liberdade de expressão, no Estado franqueando direitos sociais e políticos, no direito universal de escolha do cidadão e particularmente na decisão de quais artes são de seu interesse. Busco estabelecer parcerias com as mesmas sensibilidades. Sempre com Rosana Caramaschi, companheira inseparável e norte verdadeiro. Meu blog comemora Carlos Gomes sem o exagero do fã-clube, mas como referência da universalidade da cultura." 
Não mudei a disposição original e, revendo algumas coisas escritas há tanto tempo, são raras as vezes que identifico coisas que mudaria se reescrevesse no mesmo contexto. Infelizmente, vários desabafos e "previsões" se concretizaram. Mas, tem sido um delicioso exercício, apesar de não haver tempo para a regularidade diária como gostaria. Gosto dos "Carlos Gomes no mapa do Brasil" e continuarão firmes. Já os "Dilemas" sempre foram as colunas mais representativas para mim. Chegamos ao número 100. À primeira série de 100. Espero fazer mais. Só lamento que o número 100 tenha sido motivado pelo epicentro de um problema tão grave. 

terça-feira, 29 de dezembro de 2015

Dilemas Contemporâneos da Cultura (99)



Máscara "A ópera em São Paulo hoje"- por CP

Reflexões sobre as consequências e as inconsistências do que representa a acusação de desfalque de R$18 ou R$20 milhões do orçamento do Theatro Municipal amplamente difundida pelos veículos de comunicação em reportagens recentes. Qual a sua origem, seu significado e efeitos na percepção pública da nossa categoria?
Parte II

Algo está insustentavelmente errado nas atividades naturais do teatro. Quem acompanha o noticiário sabe que o TMSP (Theatro Municipal de São Paulo) tem sido permeado de denúncias em frequência indesejável, sempre relacionadas às práticas da área artística no relacionamento com artistas nacionais e estrangeiros, além de atritos no âmbito interno do teatro.

Dada a dimensão do “estrago” (processos e protestos) ao longo deste período, não pode ser esta a maneira correta de se relacionar com pessoas. Profissionais não devem ser desqualificados, mas a eles dar-lhes luz. Não se pode construir Cultura num ambiente de relacionamento tão desastradamente rudimentar e alicerçado na superexposição deste ou daquele individuo. Isto não dá. Não pode ser assim. 

Em mais de uma oportunidade fomos chamados de sociedade provinciana , quando não há nada mais provinciano do que se dizer isto, do que dizer-se belo quando estes juízos não são do sujeito, mas daqueles que o observa. Não há prazer renitente em si próprio. 

Chamar esta de sociedade provinciana é um desatino. Mas, pensemos um pouco. Se há provincianismo num determinado grupo e isto é ruim, não é exatamente o papel da Cultura fortalecer os processos de criação do próprio grupo para combate-lo? Se não há provincianismo e isto é bom, não é mesmo o papel da Cultura, ampliar e favorecer os espaços criativos para que a arte se sobressaia?

Esta é outra questão interessante. Nós, artistas que vivemos do espetáculo, da criação e da realização de obras de arte, nesta manifestação tão complexa que ora é vista como entretenimento, ora como reflexão identitária, sabemos que ópera é fruto de uma criação coletiva. Muito embora caiba a um diretor a criação conceitual o espetáculo, e agir para que, do regente e elencos ao operador de luz, todos entendam e trabalhem de forma sinérgica, também sabemos que o resultado final é derivado da intervenção individual em associação coletiva. Se não for assim, não acontece, não se aperfeiçoa, não há como desenvolver.

Esses fatos que ilustram o cenário do TMSP, em atos intermitentes, culminando com as atuais denúncias públicas de desvios de dinheiro feitas pela Controladoria Geral do Município e do Ministério Público Estadual, não pode ser assumida como uma sucessão de variáveis aleatórias independentes, como adorariam teóricos como Moivre ou Laplace ou seus sucessores Bernstein, Tchebyshev, Lyapunov e outros.