quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Dilemas Contemporâneos da Cultura (43)



aquarela de Gonçalo Ivo
O post de hoje é uma resposta publicada no site Cultura e Mercado a um comentário do empresário artístico Gil Lopes e outro do compositor Carlos Henrique Machado sobre artigo que publiquei (Cultura e Eleições). No calor do debate político e talvez na tentativa de qualificar seu candidato desqualificando o outro e vice versa (paixões descontroladas e furiosas são incrível desperdício de energia criativa), ambos, com óticas diferentes, dizem que a ópera é uma manifestação de cultura européia, que não interessa à Cultura Brasileira ou coisa parecida. 


Caro Gil
Agradeço a você a oportunidade de lhe contar um pouco sobre ópera e o que é como forma de expressão (de certo modo aproveito para responder em parte ao Carlos Henrique). A culpa não é sua por não ter lhe sido dada a possibilidade de conhecer outras atividades artísticas de maneira mais abrangente e falo isto sem nenhuma pretensão de "superioridade" ou de "maior conhecimento" a respeito disto ou daquilo. Faço esta ressalva, porque, como você certamente, combato todo o caráter pernóstico e arrogante que pode haver em alguns grupos cultores das chamadas artes eruditas. 
Antes de qualquer coisa, vamos localizar a atividade no Brasil. 
A ABPO-Associação Brasileira dos Profissionais de Ópera estima algo entre 5.000 e 6.000 profissionais em atividade no país, sem levar em conta os grupos corais independentes. Estas são pessoas que regularmente participam de trabalhos relacionados ao canto lírico e à produção de espetáculos desta atividade. São membros da ABPO praticamente todos os regentes brasileiros em atividade (na música de concerto e na ópera), salvo uma ou duas exceções, além dos principais diretores cênicos, cenógrafos, técnicos, figurinistas, pianistas, cantores solistas e coralistas entre outros. 
A maioria dos profissionais citados têm curso superior, tendo se dedicado pelo menos 8 anos de estudo específico para atingir graus de excelência. 
Há um forte preconceito contra a ópera por desconhecimento do que se trata. Em primeiro lugar, a ópera é um gênero de formação por excelência, haja visto que um maquinista formado para a ópera pode atuar em qualquer outra atividade das artes cênicas. O mesmo acontece com iluminadores, cenógrafos, cenotécnicos, pintores, escultores, marceneiros, figurinistas, aderecistas, técnicos em efeitos especiais, camareiras, maquiadores, caracterizadores, coreógrafos, bailarinos, músicos de orquestra, pianistas, regentes, diretores de palco entre outros. 
Por se tratar de uma atividade artistica que se vale de todas as demais formas de expressão, e dado seu grau de complexidade regularmente envolvendo em torno de 300 proffssionais diretos para sua realização, é natural que a ópera tenha muito a contribuir para todas as demais artes. Por questões estruturais o inverso nem sempre é verdadeiro, já que a linguagem do espetáculo teatral de ópera possui especificidades e tem exigências muito complexas, a começar de uma partitura com algo em torno de 2 horas de música, envolvendo uma orquestra inteira, linhas de canto distribuidas para inúmeras vozes, entre outras "pegadinhas" digamos assim. 
Muito embora se defina que a ópera começa na Itália no século XVII, suas origens remetem ao teatro grego, chegando inclusive à idade média com representações sacras cantadas nas igrejas. Aqui no Brasil tivemos e temos vários nomes importantes para a ópera. Se a história nos deixou Carlos Gomes, nossos contemporâneos como Ronaldo Miranda e André Mehmari (somente para ficar com os dois) só não produzem mais porque não têm estímulo para isto. 
A ópera é um espetáculo de narrativa do comportamento humano, comédia ou tragédia, não importa, mas narrativa da maneira como somos, como vemos nossas questões sociopoliticas. Em síntese, é um espetáculo de teatro musical ao vivo cuja narrativa se vale de todas as possibilidades técnicas e artísticas conhecidas para se concretizar. 
Dizer que ópera é dominação cultural ou estética européia é uma bobagem sem tamanho tão grande quanto dizer, enquanto se lambuza de molho de macarronada numa cantina italiana, que o jazz e dança contemporânea são fruto do imperialismo americano. Este raciocínio canhestro leva alguns agentes culturais a acharem que texto de dramaturgo francês não pode ser encenado, ou livro de escritor australiano é aborígene. Vamos lá, nossa cultura é o resultado descontrolado de todas estas influências, ou o Brasil aprendeu o chorinho sem qualquer informação estrangeira? 






A capoeira nasceu aqui,sem nenhuma influência africana? O que são as festa do Divino? E a música gaucha? Não há nenhuma influência mexicana na música goiana? E a música armorial nordestina? O Brasil é mesmo um país recheado de principes e princesas? Não ficou nada dos holandeses no Recife? Nossos pintores ou escultores nada devem a Rembrant, Matisse, Kandisnky, Modigliani? E os nossos estudantes de música quando vão para a escola usam que métodos? 

Não gosto de rótulos e gavetas na Cultura. Nem desta coisa meio piegas (meio intelectual de boteco) de olhar o Brasil sob a ótica da escola de samba, da avenida, do povo dançando na rua, abraçados, último pierrot e colombina a cantar suas tristezas e alegrias... Isto é bucolismo oportunista e sátira de uma realidade mal desenhada em que o povo - o tal povo - tem a necessidade de uma catarse que só se dá na avenida e no carnaval. 
Ora, vamos lá... Pensemos de maneira universal e equanime. Prefiro sonhar com o povo tendo alternativas de escolha, com acesso facilitado ao teatro, cinema, ópera, dança, exposições, livros, fotografia e outras perspectivas tão satisfatórias quanto Os Filhos de Gandhi ser for esta sua o p ç ã o. 
Esta é uma questão importante. Ao individuo sem alfabetizaçao para a arte não lhe sobra alternativa senão aquela que está à mão. 
Explico. 
Nosso problema mais grave é a falta de políticas públicas que favoreçam a alfabetização para as artes. Traduzindo, é preciso que as pessoas aprendam a ler os códigos que estão implícitos numa pintura, num espetáculo de dança, de ópera, de carnaval. Não se trata apenas de dizer vi, gostei, não gostei, cantei prá caramba, é tudo colorido, este é mais bonito, este é mais feio. 


Esta é a questão principal no que tenho me proposto a discutir. Não se trata de Dilma ou de Serra, pois esta é uma questão que será decidida nas urnas e sob a batuta da média das expectativas da população brasileira que necessariamente não faz o mesmo juízo que nós - com graus diferentes de alfabetização - fazemos. Trata-se sim do que estamos dispostos a levar como bandeira - digamos - para a Cultura. 

Como artista acompanho o que vem sendo realizado no Brasil na área Federal para a Cultura e, na medida do possível, participado de debates com foco específico na minha principal atividade, apesar da formação ser mais abrangente. Acho que tenho a contribuir para a ópera e precisamos desenvolver o gênero considerado o potencial instalado no país além das considerações já feitas e outras compatíveis. 
Tenho uma relação cordial com o Ministro Juca Ferreira de quem reconheço a tenacidade e capacidade de articulação (aliás já mencionado nesta Cultura & Mercado em artigo anterior). Ele - e o Ministério - reconhecem que nada de relevante ou estruturante foi feito para a àrea da Música Erudita e em particular da Ópera. Não acredito - e não vi nas várias oportunidades e pessoas com quem conversei no MinC, qualquer ranço de descaso ou preconceito com a ópera, ou mesmo a leitura de que se trata uma atividade a ser alijada do cenário artístico. Isto sequer passaria pela cabeça de qualquer dos técnicos que lá estão, acredito.. Há sim um entendimento geral de que é necessário avançar nesta matéria e que se trata de uma atividade com características próprias de assimilação difícil por todas as razões já expostas aqui inclusive. 
Também é preciso compreender que da mesma maneira que o Governo Lula antes de ser Lula/Dilma foi Lula/Zé Dirceu, antes de Juca, o MinC foi Gil. Ou seja, foram oito anos, com gestões diferentes, formas de pensar e maneiras de agir diferentes. O avanço se deu na estrutura do pensamento, na criação das bases para se discutir nossa identidade, um trabalho que está longe de ser concluído e será objeto de mais algumas gestões. Avançamos muito na quantificação da Cultura com as pesquisas realizadas para o Ministério e finalmente temos no Brasil alguns parâmetros numéricos para pensar de maneira articulada com a realidade. Gosto das idéias e do conceito dos pontos de cultura, acho muito importante o que se fez até aqui com a Rede Nacional de Música, por exemplo. Lamento não termos avançado - e perdemos muito tempo com isto - com as formas de financiamento à produção Cultural. Caberá ao novo governante (ou à) resolver isto. 
Insisto, Gil, que devemos pensar o futuro. 
Volto à ópera. Se concordasse com você acerca do que fez o Obama*, estaria tranquilo, pois a maioria dos trabalhos na área da ópera no Brasil são realizados aqui, gerando empregos aqui. Porém, não comungo do conceito "o que é bom para a América, é bom para o Brasil". Isto é reviver o passado. 
Nós brasileiros temos condições de escrever nossa história sozinhos, mas sou radicalmente contra qualquer forma de xenofobia, talvez por viver em São Paulo (sou mineiro) onde não há preconceito de origem. A cultura não pode ser xenófoba e por isto é preciso cautela. 
Acho natural que se tenha incentivo para trazer ao Brasil a Orquestra Sinfônica de Berlim, com financiamento público (seja incentivo, seja fundo de cultura ou outra maneira) desde que as apresentações aconteçam em teatro com ingressos a preços reduzidos, ou incluindo apresentação ao ar livre sem cobrança de ingressos. Da mesma maneira, acho que se pode financiar com dinheiro público uma exposição de obras de determinado artista europeu, de determinado museu, obedecendo lógica semelhante de acesso. Coisas ditas em contrário são para mim conclusões apressadas e desprovidas de conhecimento relativos às necessidades de intercâmbio, de aprendizado etc. É também importante ressaltar que acho imprescindível que artistas brasileiros tenham subsídios (apoio federal com dinheiro público seja através de fundos de cultura, ou práticas de incentivo através de leis específicas) para apresentações no exterior. Também sou a favor (acho imprescindível) que haja convergência entre as artes eruditas e populares. Apesar disto acho que nem o carnaval é ópera popular, nem a ópera é parecida com o carnaval. Ambas são formas de expressão com raízes próprias e independentes. 
Finalmente, Gil, volto ao início do seu texto em que vc diz "me interessa a ópera do Brasil, carnavalesca...". Entendo a sua alegoria e a respeito. Acho até que comungamos disto mais do que você imagina, mas como me aboletei na missão de te contar um pouco o que é ópera - a minha e de milhares de brasileiros, milhões de pessoas no mundo, continuo com o tema, encerrando brevemente para não lhe dar fastio de leitura. 
A ópera conta a magia da natureza humana e está presente na sua vida de tal maneira que se você prestar um pouco mais de atenção em suas atividades corriqueiras verá que é quase impossível pelo menos uma vez por dia ter contato com ela. São inúmeros os filmes, programas de rádio, novelas, programas de tv, comerciais, que utilizam trechos de ópera. É impressionante. Duvido que vc não tenha na infância ouvido o Picapau cantar a ária do Fígaro de O Barbeiro de Sevilha, é impossível você não conhecer a ária do Toreador da Carmen, Nessum Dorma da ópera Turandot, as Valquírias de Vagner no comercial da Cofap ou na trilha do Apocalipse Now, é impossível que vc não tenha ido a um casamento com a Marcha Nupcial da ópera Lohengrin (coitada da noiva! Divórcio na certa por não saber o que a marcha representa.). Quem nunca ouviu a ária da Rainha da Noite da Flauta Mágica? 
A ópera está presente na sua vida de forma indelével, fecunda, levando você e milhões de pessoas a se emocionar sem sequer a oportunidade de pensar a respeito por puro desconhecimento. 
Isto é fruto de um sistema educacional falido, precisando de uma revolucionária modificação que dê aos professores condições de aperfeiçoamento, de remuneração justa por mérito, que amplie as condições de acesso, com a devida base cultural que assegure a informação em níveis qualitativos mais abrangentes. 
Esta tarefa, em minha opinião, precisará ser parte da cartilha do futuro governante (ou da). Existem meios e recursos para isto. Precisamos de técnicos e gestores com visão de futuro, sem o imediatismo da próxima eleição. Como muito bem disse Marina, precisamos de propostas para o futuro e de um plano diretor para isto, uma pauta que não terminará em 4 anos, nem em oito. 
Somos muito jovens para sermos tão velhos com tanto preconceito. Nossa análise e circunstâncias nos levará a escolher alguém dentro de alguns dias, mas o que queremos, como vamos nos postar frente ao governo que vem, de que maneira vamos agir, nos organizarmos para preparar o Brasil é o que de fato deve nos mover agora. 
Sou e continuarei sendo terminantemente contra trocas de acusações, xingamentos, juízos tortos de valor. É fácil chamar este de fascista, aquele de corrupto ou criar novos atributos. Quem bateu e quem apanhou pode ser a mesma pessoa dependendo do interesse de quem narra. Estou fora. 
Sabemos muito bem do que estamos falando e, como vc disse, de onde vem a baixaria no Brasil. Por esta razão, temos que estar preparados para trabalhar, independente da bandeira partidária que eventualmente carregamos. 
Quanto ao café, acho que é uma boa idéia para qualquer dia desses.





(*) no texto Gil Lopes cita que o presidente Obama (EUA) "decretou impedimento ao incentivo fiscal do que não traz emprego ou riqueza dentro do terreno dele, mesmo feito por empresas americanas" (sic). Mais um equívoco da administração Obama que está vivendo seu "inferno" (apanhando da direita, da esquerda e do centro na política americana).