quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

Diálogos Contemporâneos da Cultura (101)

Máscara "A ópera em São Paulo hoje"- por CP

Reflexões sobre as consequências e as inconsistências do que representa a acusação de desfalque de R$18 ou R$20 milhões do orçamento do Theatro Municipal amplamente difundida pelos veículos de comunicação em reportagens recentes. Qual a sua origem, seu significado e efeitos na percepção pública da nossa categoria?

Parte IV


Não quero passar dos limites, por que o exagero pode parecer desrespeitoso, maledicência, pode ser traduzido por inveja ou corruptelas de caráter que não me dizem respeito.

Mas, não passando dos limites, fica difícil acreditar que a ópera La Bohème, a ser reposta pelo teatro, venha a custar um milhão, novecentos e oitenta reais, como divulgado pelos veículos de comunicação, mesmo com moedas estrangeiras nas alturas. Por que, se o cenário* já construídorestringe-se a um quadrado de uns 4m x 4m ou 16 m², constituído de algumas peças de mobiliário, com um bonde cenográfico fixo em um dos atos, e alguns elementos de cena e, portanto, com reduzido custo de reparos, se necessários? Com cenários prontos, com luz possível de ser feita com os equipamentos que o teatro possui, com uma sonorização mínima, com sistema de legendas já pago, sem qualquer dificuldade na caracterização, com figurinos já executados, com eventualmente um ou outro ajuste realizado internamente, sem custo adicional de orquestra e de coro, sem necessidade de contratação  com elenco nacional de excelente padrão, perfeitamente contratável, por que um valor tão elevado?

Mesmo que justifiquem este orçamento, não é sadio para a atividade, não é criativo, não é inteligente, não é aceitável à luz das próprias dificuldades por que o teatro alegadamente passa.

Um amigo, contador, com quem conversei, ponderou que “como contabilista, não tenho por que, nem como julgar o interesse artístico, a qualidade – palavrinha abstrata – de um trabalho deste, mas como deve ter pensado o Controlador do Município, somando todos os números que se fala aqui e ali, a conta não bate. Alguém tem que explicar isto”.

Vamos ao ponto. Voltemos ao contrassenso com que comecei esta série de reflexões.

Não é um absurdo, um total contrassenso, um abuso da nossa capacidade de discernimento, que a Prefeitura venha a público dizer que só acionou a Controladoria Municipal depois que o Diretor Artístico do teatro, um empregado de altíssimo escalão, magnificamente remunerado para não criar nem levar problemas, comentou com o prefeito que havia algum problema na gestão? Soma-se a isto a Prefeitura afirmar ter agido, somente após o pedido de demissão de outro diretor quando este alegadamente disse ter saído por “divergências pessoais, interferências exteriores ou o embate entre visões distintas”?

Algo não bate, como diria meu amigo contador. 

(*) Quando vi o espetáculo, levei um susto quando a cortinas se abriram. Levei um cutucão "mediúnico" com a cenografia incrivelmente parecida com a que desenhei em 2010 para a produção de La Bohème na nossa Companhia itinerante. Por incrível que pareça, a mesma utilização do espaço delimitado por um quadrado, em medidas incrivelmente parecidas, com o mobiliário teatral utilizando os mesmos elementos que criei para nossa montagem. No nosso caso, um quadrado delimitador do espaço "não teatro" como desejei para o espetáculo. Sem pretender ser crítico, gosto mais da nossa encenação que, embora seja um texto "curto", possui uma dinâmica mais ao espírito da juventude com que vejo os personagens. Gosto também da maneira como os objetos de cena se transformam em outros numa dinâmica muito particular da nossa Companhia. Não sei quem criou o cenário da Bohème do Municipal e esta é uma demonstração de como uma boa ideia quando está no ar, pode ser utilizada por dois artistas que não se conhecem, mas que têm convergências criativas.

quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

Diálogos Contemporâneos da Cultura (100)

Máscara "A ópera em São Paulo hoje"- por CP


Reflexões sobre as consequências e as inconsistências do que representa a acusação de desfalque de R$18 ou R$20 milhões do orçamento do Theatro Municipal amplamente difundida pelos veículos de comunicação em reportagens recentes. Qual a sua origem, seu significado e efeitos na percepção pública da nossa categoria? *
Parte III


As atuais denúncias públicas de desvios de dinheiro feitas pela Controladoria Geral do Município e do Ministério Público Estadual são muito ruins para o Theatro Municipal de São Paulo (TMSP). Como se trata de uma atividade realizada coletivamente, não dá para imaginar que os supostos desvios sejam calculáveis como probabilidade sujeita a variáveis aleatórias independentes, mas como resultado de mecanismos interdependentes.

Quem decide custos, negocia contratos, define elenco com agentes e produtores, não participa, não sabe dos processos de contratação como foi dito nos veículos de Comunicação?

Como assim? Um diretor artístico de qualquer teatro do mundo tem a responsabilidade – a obrigação – sob pena de ser dito incompetente e incapaz – de conhecer os custos que o teatro está pagando. Para isto, além das atribuições diretas, possui uma equipe que trabalhando sob normas, lhe oferece, na melhor dos modelos, alternativas confiáveis. É sua responsabilidade decidir o que será feito e até dizer quanto está disposto a pagar para ter este ou aquele resultado. Não se trabalha numa ilha criativa imaginando que tudo dá. É dá função trabalhar sob pressão de custos, fazer mais com menos, planejar, desenvolver, criar, negociar.

E não atribuam incapacidade de gestão a tamanho de ego. A ópera já teve, no passado, alguns poucos casos  de ególatras possessos que relativamente deram certo. Claro que isto, no passado.  

Não venham dizer que para fazer alguma coisa é preciso ser controverso, provocativo ou outros adjetivos desta natureza. Para ficarmos apenas na ópera, se usarmos esses adjetivos para alguns gestores, parodiando Suassuna, que adjetivo usar para aqueles que realmente têm feito a diferença nos seus teatros em outros países? Aqueles que além de provocação e controvérsia criativa, atuam com austeridade e rígido controle orçamentário, em situações de crise econômica, social e politica e, produzindo como nunca, sabendo que ampliar a ação cultural é desejável e necessário quando as ameaças à sociedade são visíveis. 

Temos que gritar no meio da arena: “Estamos no século 21”!

Como nos satisfazermos com um modelo que transforma um Teatro Monumento em algo circunscrito a pouco mais que uma ou duas quadras no centro da cidade, incapaz de ampliar suas possibilidades, de atender a missão de Estado servidor que um equipamento desta dimensão possui? Não é disfarçando sua ação com meia dúzia de bons cantores fazendo o melhor de si num terminal de ônibus que se fará isto. Está errado.

As matérias recentes, com anúncios de reduções e retomadas de temporadas, com menções de orçamentos diferentes, com projeções de custos inconsistentes entre si, não soam como algo sério, ou que deva ser levado a sério.

Não é possível imaginar que – transformados em fontes – os jornalistas responsáveis pelas matérias publicadas até aqui não sejam sérios e capazes de reportar corretamente o que ouviram. Estou com eles nisto e não acho aceitável que se atribua a especulação da mídia qualquer questão que contrarie os desejos pessoais dos envolvidos. Garanta-se sempre o direito de defesa - isto é inabalável, mas preserve-se a liberdade de investigação e de opinião, principalmente numa questão tão delicada e sensível para milhares de profissionais em todo o país. Ah, sim. A ópera possui no Brasil mais de 5.000 pessoas potencialmente envolvidas direta ou indiretamente na formação, criação e produção. É pouco. Por enquanto. 

O orçamento do TMSP divulgado gira em torno de cento e tantos milhões de reais, um número que não é preciso e variou conforme o aumento da crise econômica e alterações entre a expectativa x captação real de recursos via leis de incentivo. Na última versão, simultaneamente à venda de assinaturas, foi anunciado que a temporada de 2016 terá apenas 3 novas produções de espetáculos e uma reposição. Para quem não sabe, reposição é a retomada de uma produção pronta do passado e sua reapresentação na nova temporada. Como em 2015, antes do comunicado do desfalque, houve cancelamento de apresentações tendo problemas de orçamento como justificativa, a situação é agora mais grave.



(*) Quando comecei este blog há alguns anos, publiquei na apresentação que "entre outras coisas, escrevo sobre Cultura. Sempre que possível, ponho em discussão temas gerais da atividade cultural, estimulando a discussão sobre a Cultura erudita e os mecanismos de alfabetização para as artes. O foco profissional é a Ópera, a Música Erudita, o Teatro e a Difusão Cultural. Acredito na convergência entre as artes, na independência de pensamento, no diálogo, na negociação franca, na liberdade de expressão, no Estado franqueando direitos sociais e políticos, no direito universal de escolha do cidadão e particularmente na decisão de quais artes são de seu interesse. Busco estabelecer parcerias com as mesmas sensibilidades. Sempre com Rosana Caramaschi, companheira inseparável e norte verdadeiro. Meu blog comemora Carlos Gomes sem o exagero do fã-clube, mas como referência da universalidade da cultura." 
Não mudei a disposição original e, revendo algumas coisas escritas há tanto tempo, são raras as vezes que identifico coisas que mudaria se reescrevesse no mesmo contexto. Infelizmente, vários desabafos e "previsões" se concretizaram. Mas, tem sido um delicioso exercício, apesar de não haver tempo para a regularidade diária como gostaria. Gosto dos "Carlos Gomes no mapa do Brasil" e continuarão firmes. Já os "Dilemas" sempre foram as colunas mais representativas para mim. Chegamos ao número 100. À primeira série de 100. Espero fazer mais. Só lamento que o número 100 tenha sido motivado pelo epicentro de um problema tão grave. 

terça-feira, 29 de dezembro de 2015

Dilemas Contemporâneos da Cultura (99)



Máscara "A ópera em São Paulo hoje"- por CP

Reflexões sobre as consequências e as inconsistências do que representa a acusação de desfalque de R$18 ou R$20 milhões do orçamento do Theatro Municipal amplamente difundida pelos veículos de comunicação em reportagens recentes. Qual a sua origem, seu significado e efeitos na percepção pública da nossa categoria?
Parte II

Algo está insustentavelmente errado nas atividades naturais do teatro. Quem acompanha o noticiário sabe que o TMSP (Theatro Municipal de São Paulo) tem sido permeado de denúncias em frequência indesejável, sempre relacionadas às práticas da área artística no relacionamento com artistas nacionais e estrangeiros, além de atritos no âmbito interno do teatro.

Dada a dimensão do “estrago” (processos e protestos) ao longo deste período, não pode ser esta a maneira correta de se relacionar com pessoas. Profissionais não devem ser desqualificados, mas a eles dar-lhes luz. Não se pode construir Cultura num ambiente de relacionamento tão desastradamente rudimentar e alicerçado na superexposição deste ou daquele individuo. Isto não dá. Não pode ser assim. 

Em mais de uma oportunidade fomos chamados de sociedade provinciana , quando não há nada mais provinciano do que se dizer isto, do que dizer-se belo quando estes juízos não são do sujeito, mas daqueles que o observa. Não há prazer renitente em si próprio. 

Chamar esta de sociedade provinciana é um desatino. Mas, pensemos um pouco. Se há provincianismo num determinado grupo e isto é ruim, não é exatamente o papel da Cultura fortalecer os processos de criação do próprio grupo para combate-lo? Se não há provincianismo e isto é bom, não é mesmo o papel da Cultura, ampliar e favorecer os espaços criativos para que a arte se sobressaia?

Esta é outra questão interessante. Nós, artistas que vivemos do espetáculo, da criação e da realização de obras de arte, nesta manifestação tão complexa que ora é vista como entretenimento, ora como reflexão identitária, sabemos que ópera é fruto de uma criação coletiva. Muito embora caiba a um diretor a criação conceitual o espetáculo, e agir para que, do regente e elencos ao operador de luz, todos entendam e trabalhem de forma sinérgica, também sabemos que o resultado final é derivado da intervenção individual em associação coletiva. Se não for assim, não acontece, não se aperfeiçoa, não há como desenvolver.

Esses fatos que ilustram o cenário do TMSP, em atos intermitentes, culminando com as atuais denúncias públicas de desvios de dinheiro feitas pela Controladoria Geral do Município e do Ministério Público Estadual, não pode ser assumida como uma sucessão de variáveis aleatórias independentes, como adorariam teóricos como Moivre ou Laplace ou seus sucessores Bernstein, Tchebyshev, Lyapunov e outros. 

segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

Dilemas Contemporâneos da Cultura (98)


Máscara "A ópera em São Paulo hoje"- por CP


Reflexões sobre as consequências e as inconsistências do que representa a acusação de desfalque de R$18 ou R$20 milhões do orçamento do Theatro Municipal amplamente difundida pelos veículos de comunicação em reportagens recentes. Qual a sua origem, seu significado e efeitos na percepção pública da nossa categoria?
Parte I

Sem dúvida, há um contrassenso nos perseguindo.

Nós diretores, regentes, cantores, músicos, atores, bailarinos, cenógrafos, designers – artistas da ópera – deveríamos ir ao teatro iluminados pela sóbria alegria do trabalho (expressão que tomo emprestada de Merleau-Pointy).

No entanto, há três anos um sombrio desprazer nos envolve quando se fala do Theatro Municipal de São Paulo.

Criadores foram sistematicamente afastados e as consequências desta atitude não serão de fácil reparação. Instalou-se um modelo em curso indesejado e perdulário.

Sob uma retórica inaceitável alega-se: 1) A casa já possui vários artistas nacionais; 2) Gera empregos com remuneração elevada; 3) O presente organizou o passado (como se fosse desajustado); 4) Finalmente o pior: justificam-se as ações em curso como uma promoção do denominado teatro a uma maravilha mundial.

Quanto aos empregos e artistas da casa, como se diz no jargão, nada a subtrair.  Afinal, é de se esperar que assim seja num teatro que pretende ser capaz de traduzir em conteúdo as expectativas culturais de uma sociedade que sequer sabe concretamente o que lhes é de direito nesta matéria. Uma sociedade que entre leigos e versados, laicos e devotos, muitas vezes se protege criando um arrazoado de opiniões e princípios guindados à condição de absolutos, mas que, no fundo, são resultado apenas da falta de referências em situações extremas como as que acontecem neste horroroso momento histórico, do exercício de certo olhar para si, para um pouco do que se faz “lá fora”, para seu entorno, para sua cultura.

Não se viabiliza nenhum processo cultural de fora para dentro, pois afinal não é a Cultura a maneira de se trazer o diferente à luz? Não é a Cultura a manifestação mais prudente das forças que compõem a memória, a maneira de se perceber, a forma como se relacionam as pessoas na sua comunidade, e por extensão na sociedade inteira? A mecânica natural do processo de desenvolvimento Cultural não é tratar o externo como referência para se proteger e se projetar o que é próprio?

Pois bem. O incomodo e toda sua lista de sinônimos, o desagradável, o embaraçoso, o constrangedor, o impróprio, o descabido, é exatamente esta incapacidade de se produzir conteúdo, nesta visão estreita que se recusa a compreender – a querer compreender – que tudo o que vem sendo feito está errado, não interessa à Cultura Brasileira, não é a maneira adequada de se conduzir artisticamente a ópera nesta cidade superlativa, não pode ser nesta relação de custos, que algo está errado, algo está muito errado, algo está insustentavelmente errado. 

sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

Dilemas Contemporâneos da Cultura (97)

Mascaras "A ópera em São Paulo hoje"- por CP

Sabe quando você fica com uma coisa martelando na sua cabeça? Você ouve o Mahler inteiro e nada? Ouve três vezes a sexta sinfonia do Bruckner (edição de 1899) e a coisa fica ali tuc, tuc, tuc? 
Como sempre faço quando algo incomoda, escrevi uma longa reflexão sobre as consequências e as inconsistências do que representa a acusação de desfalque de R$18 ou R$20 milhões do orçamento do Theatro Municipal amplamente difundida pelos veículos de comunicação em reportagens recentes e quais os possíveis efeitos na percepção pública sobre a nossa categoria.
Sabemos que a maioria dos profissionais da área não possui qualquer envolvimento com estas denúncias, mas não podemos carregar o estigma de sermos criadores de um gênero caro, impagável, com estas fragilidades, quando sabemos que existem no Brasil todas as condições técnicas e criativas para se desenvolver a ópera de maneira saudável. Já demos provas disto várias vezes na história recente do gênero.
Que as atividades festivas e de confraternização deste final do ano sejam capazes de nos unir em pensamento para que a partir deste recomeço que será necessário, quaisquer que sejam os resultados, possamos seguir não cabisbaixos, entristecidos, mas firmes e fortalecidos.