quinta-feira, 20 de maio de 2010

Dilemas Contemporâneos da Cultura (24)

Le pigeon aux petit pois
de Pablo Picasso (*)
Continuando...

Imaginemos um jovem que manifestou, por algum mecanismo interno, o desejo pelo canto, por tocar um instrumento, pela pintura.

Se o largarmos à própria sorte, sem qualquer instrução específica, poderá se transformar num artista que desenvolverá um tipo de trabalho limitado às suas circunstâncias aqui entendidas como falta de acesso a outros suportes, técnicas, métodos entre outros. Terá sua importância nestes limites, mas dificilmente sua contribuição será universal como se espera da arte. Isto não significa que seu trabalho seja menos importante, por exemplo, para a construção da identidade nacional.

De fato a ampliação do significado futuro do trabalho de qualquer artista tem um caráter muito mais especulativo. Este é outro caráter do trabalho artístico. Diferente de um trabalho operário que possui um planta, um desenho prévio que permite antever o resultado, escolher a cor, a troca de alguns detalhes antecipadamente segundo expectativas de consumo obtidas em pesquisa, quanto mais erudito for o trabalho artístico, menor é a possibilidade de conhecimento prévio do resultado futuro, porque o trânsito da criação, ainda que seguindo normas e padrões técnicos, tem um componente de abstração imprescindível e natural desta atividade.

Mas voltemos ao jovem “futuro artista”. Quanto mais contribuirmos para sua instrução, alargando seus horizontes criativos através do conhecimento de mestres, da visão do trabalho de outros artistas, do aperfeiçoamento teórico e técnico, da sua condição e possibilidades profissionais, maiores serão os resultados deste jovem criador. Claro que isto também é pura especulação, uma vez que não há garantia de resultado em qualquer investimento desta natureza.

A pergunta neste caso é “qual é a importância disto?”. Se este jovem se tornar um excepcional expoente na sua forma de expressão, justificou-se claramente o investimento realizado.

Por outro lado, mesmo que ele, após todo o seu aprendizado, decida voltar às suas origens, com toda certeza o fará com maior domínio técnico e ampla visão artística. Finalmente,  após tudo que lhe foi oferecido, sua decisão pode ser apenas observar e conviver com a(s) arte(s) em fruição. Em ambos os casos, também terá valido a pena.

Continuarei...

(*) a pintura Le Pigeon aux petit pois (O pombo e as ervilhas) de Pablo Picasso integra o lote de 5 quadros roubados nesta madrugada de quinta feira no Museu de Arte Moderna de Paris, segundo fontes da AFP.

terça-feira, 18 de maio de 2010

Carlos Gomes no mapa do Brasil (16)

Frevo
Heitor dos Prazeres
A Praça Castro Alves é do povo
Como o céu é do avião...


É impossível não lembrar da frevo novo de Caetano Veloso e da praça que abre os versos quando se vai à Bahia e esta é uma questão interessante. Na Virada Cultural de São Paulo deste último final de semana, eram muitos os palcos instalados. Na Estação da Luz, dois palcos enormes, um de frente para ou outro, o primeiro com a dança e o segundo com a música de concerto para quem chegava da Estação Julio Prestes onde fica a Sala São Paulo e, para a Virada, foi instalado um palco para os populares da MPB, os populares eruditos, podemos desafiar assim. E alí, entre cheiros vários, juntaram-se algumas milhares de pessoas de várias idades encerrando a Virada com gostinho de quero muito mais ao som da Cantoria de Elomar, Geraldo Azevedo, Xangai e Vital Farias. Os hits de pelo menos 26 anos, foram cantados por muitos inclusive garotos e garotas que nasceram muito depois do quarteto começar a refletir um Brasil sertanejo, armorial em todos os grotões como eles mesmos dizem.
 
Entre o prazer de apropriação de uma cidade jamais vista com o olhar integral do asfalto a não ser em oportunidades como esta e da convivência com as várias tribos, ficou uma reflexão: quais as outras possibilidades que permitem integrações tão interessantes e, ao mesmo tempo, capazes de revigorar a memória, as nostalgias, as saudades de nós mesmos.
 
De certa maneira, apenas a música revista, nos levaria à Bahia, onde outra convergência acontece todo o dia, pois o povo, ao sair da sua praça - a Praça Castro Alves, obrigatoriamente segue pela Rua Carlos Gomes uma rua, um compositor que, como Caetano Veloso, também é do povo, da nossa identidade, da memória e história da nossa música.

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Dilemas Contemporâneos da Cultura (23)

Orquestra de Ópera
Edgar Degas

Em minha opinião, iniciou-se um debate interessante nestes Dilemas. Ver comentários em Dilemas Contemporâneos da Cultura (22).

Para ampliar um pouco mais, proponho uma analogia nascida da reflexão sobre uma conversa que também tive há poucos dias com alguns amigos sobre as diferenças entre cultura erudita e popular.
O artista é um ser humano diferente e isto não o torna melhor ou pior. Apenas é diferente, por seu trabalho - a arte em si - e pela forma como se expõe.
Muito embora o trabalho artístico seja essencialmente trabalho, não podemos ficar nesta leitura rasa de que é trabalho como outro qualquer.
Não dá para achar que os músicos de uma orquestra são um monte de operários(*) sentados à frente de estantes, trabalhando sob o comando de um operário-chefe com um bastãozinho agitado no ar. Isto não tem nada a ver com o fato de músicos serem contratados dentro de regras comuns às categorias profissionais no mercado de trabalho.


De fato, para o artista profissional aqui entendido como aquele que vive da sua produção artística e dedica a ela a maior parte do seu “tempo de trabalho”, a sua relação com as lides artísticas devem, na maioria dos casos, ter suas rotinas como em qualquer atividade. Ou seja, há uma fase de árdua dedicação para que sua arte se conclua ou esteja em ponto hábil para exibição pública.

Por outro lado, o método e a circunstância em que a produção artística acontece possuem elementos que evidenciam uma natureza diferente para este tipo de atividade. Neste terreno fértil, intuição, percepção, emoção, risco passam a ser constitutivos da natureza do trabalho artístico.

Desde a revolução burguesa na França no final do século 18, os artistas passaram a viver de criar o que julgavam “bom” e a procurar aquele que se interesse por seu trabalho. A sua relação com o mecenato mudou de uma confortável dependência em que os “patrões” diziam o que e como queriam, para uma circunstância em que as regras passam a ser da incerteza econômica e outros níveis de dependência, sem perder os elementos naturais da produção citados acima.

Estas novas relações são determinantes de um novo modelo em justaposição a uma dinâmica de mercado.

É preciso entender isto claramente. Cabe ao gestor o papel de compreender esta natureza e apoiá-la como um suporte de conexão à realidade.

Volto ao tema.

(*) Antes que digam que sou preconceituoso com os operários, entendo operários como sendo membros de uma categoria profissional que executa trabalhos manuais, de forma remunerada, para um empregador, transformando matérias primas ou, tendo conhecimentos técnicos de um determinado ofício, atua com materiais que lhe são fornecidos em vários graus de especialização.

sexta-feira, 7 de maio de 2010

Dilemas Contemporâneos da Cultura (22)

Nebulosa Rosetta
foto NASA

No post de ontem propus uma indagação a respeito do Trabalho Artístico como um alargamento da finalidade intrínseca da natureza humana e a gestão de Cultura sendo uma questão estrutural de responsabilidade sobre a vida.
Sem os excessos de provocação a que estas afirmações poderiam conduzir, neste contexto o gestor de Cultura é o principal agente modificador do status do cidadão na medida em que favorece a fruição do Trabalho Artístico em todas as esferas.
Dirão os céticos que não é viável propor expectro tão amplo como linha de abordagem na gestão cultural exatamente pela natureza plural da atividade artística.
Claro que não podemos discordar disto. Sejamos razoáveis.
Mas, mesmo na razoabilidade, propor todas as esferas possíveis é diferente de afirmar ser inviável propor todas as esferas.
Conhecida a natureza do Trabalho Artístico e reconhecido pelo gestor, será a estrutura instalada e as expectativas de conjunto que conduzirão nesta perspectiva.
Isto não significa transferência de responsabilidades. Continua sendo do gestor o encargo de facilitador do acesso aos bens culturais e precisa ser avaliado por isto.

quinta-feira, 6 de maio de 2010

Dilemas Contemporâneos da Cultura (21)

A criação de Adão - Capela Sistina
Michelangelo Buonarroti - 1511

Tomando como ponto de partida a fundamentação expressa na Encíclica de João Paulo II sobre o Trabalho Humano (Laborem Exercens) "o trabalho constitui uma dimensão fundamental da existência do homem sobre a terra".
A relação entre homem e trabalho se dá como atividade essencial e própria da natureza humana, na medida em que entendermos ser o trabalho uma ação premeditada, planejada, modificadora do meio ambiente, do próprio homem e a favor dele. Como dirão os leitores da Bíblia, está em Genesis 1,28 a determinação "enchei a terra e submetei-a", sendo esta submissão a tal relação modificadora.
O que difere o homem dos animais é a sua perspectiva de opção criativa para realização do seu trabalho.
Cheguei ao mote.
A criatividade é portanto uma questão essencial para o entendimento do trabalho. Os físicos que me perdoem, mas o trabalho aqui admitido é diferente do T (o tau grego) e nada tem a ver diretamente com força e deslocamento.
A dimensão deste "trabalho" é a da essência humana, o que o torna típico do homem e apenas dele.
Ampliamos ainda mais o conceito se nos referirmos ao Trabalho Criativo e, por extensão, ao Trabalho Artístico.
Podemos concluir que o Trabalho Artístico é o alargamento da finalidade intrínseca da natureza humana o que torna a gestão de Cultura uma questão estrutural de responsabilidade sobre a vida.

Voltarei ao tema.

quarta-feira, 5 de maio de 2010

Dilemas Contemporâneos da Cultura (20)

Brunhilde - Das Rheingold, de Richard Wagner
por Arthur Rackham - 1910

 Quantos compositores maravilhosos temos na História da Música!...
Está certo, você pode e deve achar a frase acima piegas, pluralista demais.
Mas por isto mesmo acho que vale a pena repeti-la e, com isto, refletir um pouco mais sobre seu conteúdo.
Quantos compositores maravilhosos temos na história da música!
Nossos compositores “vivos” são poucos, desconhecidos, pouco de sua produção vem a público.
Por um fenômeno recente, muita ênfase tem sido dada aos regentes, guindados à condição de guardiães da boa música e de tradutores desta linguagem fundamental para o desenvolvimento humano. Este é um problema grave, uma vez que excluídas as gravações, nada fica do intérprete a não ser a memória impressa. Apenas as composições ficam.
Considerando que há regentes e regentes, com orquestras em diferentes padrões de orçamento, não é comum que se comissionem compositores para novas peças.
Esta é uma questão de Estado e não de interpretes, muito embora as boas orquestras e os bons regentes busquem mecanismos para encomendar peças novas para o repertório. Aliás, fica aí uma boa sugestão de critério para definir padrão de orquestras: são melhores as que comissionam pelo menos uma peça nova por ano. Vale o mesmo para os regentes.
Voltando à questão de Estado, qualquer que seja o feitio, é prioridade que se tenha nas políticas para o setor Cultural programas que comissionem novas composições e com isto promovendo a continuidade da história da música.

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Carlos Gomes no mapa do Brasil (15)

Luiz Molz - Banquo - Macbeth
foto: Paulo Lacerda

- Mas, Mãe... Oito e meio?
O menino (para a mãe), rapazola de talento, não entendia. Sua mãe, professora de canto, lhe dera a pior nota do seu curriculum e, provavelmente, esta tenha sido a melhor lição que poderia ter recebido. Afinal, passados tantos anos, é da pior nota que se lembrou primeiro.

Dizer isto também não é justo. É impossível não lembrar e recomendar o “xis-mignon bacon” (assim mesmo com x, abrasileiradamente escrito) do Ponto de Cinema ou do “xadrezão” do Pereira, lugares freqüentados por estudantes, professores, milicos, intelectuais, seminaristas e toda a sorte de pensadores e cabeças vazias de que se tem lembrança.

Acho que Kalsruhe não é mais tão alemã desde que ele chegou lá. Nem o Badisches Staatstheater, onde trabalha, é o mesmo. Nos corredores de uma das principais casas de ópera da Alemanha, com orçamento e temporada técnica e artisticamente superiores a outras mais tradicionais, o baixo circula com a desenvoltura de quem desempenha em padrões de excelência os principais papéis da sua tessitura.

Claro que com saudades do Brasil. Mais proximamente da cidade onde nasceu e ganhou aquela nota insuportavelmente baixa e comeu todos os sanduíches que tinha direito. Só não saboreou os da Lancheria Carlos Gomes, onde saem da chapa os hambúrgueres de Elidia e Fernando, na Rua Carlos Gomes, em Santa Maria, no Rio Grande do Sul.



O nome do menino, rapazola e hoje um dos grandes baixos brasileiros?

Ike para os amigos e Luiz Molz para todos que gostam da música bem cantada.

Dilemas Contemporâneos da Cultura (19)

Ópera de Paris

Em breve, passadas as eleições, certamente ouviremos dos novos Secretários de Cultura que não conhecem plemanente a atividade que estão desenvolvendo, mas que se esforçarão ao máximo para utilizar a experiência que possuem de outras áreas para ajudar a implementar a atividade cultural.


Este fato corriqueiro é fruto de um problema crônico: existem poucos gestores disponíveis. Ou seja, não é fácil encontrar profissionais que tenham forte visão administrativa com cacoete artístico ou vice-versa dependendo da necessidade de cada Cidade ou Estado. Como o cargo de Secretário é um cargo político, é comum a priorização da lide política à questão cultural. Nesses casos é também ordinário que se coloque a Cultura a serviço da política e não exatamente o contrário como é de se supor.


Há também a peculiaridade que este gestor precisa conhecer a máquina pública, os mecanismos que fazem com que ela funcione, suas travas jurídicas. Idealmente, precisaríamos de pessoas que tivessem o conceito da máquina pública, principalmente no que tange a boa gestão dos recursos públicos, com a agilidade e visão de futuro da atividade privada, com suficiente bagagem intelectual que lhe emprestasse o bom gosto pelas artes, a aceitação das diferenças, a apologia do belo, o respeito ao criador, a compreensão dos mecanismos que viabilizam a produção dos espetáculos, das exposições, as necessidades de cada ator no segmento.


Este superser é raro no Brasil. Mas caminharemos para isto. Há espaço para este tipo de desenvolvimento pessoal e esta é uma nova carreira necessária.