Em 1948, três anos após o final da segunda guerra, T.S. Eliot publicou um apelo à ordem em meio a uma Europa ferida e despedaçada que denominou “Notas para a definição da cultura”. Assim escrito como introdução, a Companhia das Letras apresenta “No Castelo de Barba Azul”, de George Steiner, um livrinho importante que integra a trilogia essencial para a compreensão das redefinições de cultura no nosso Século. A terceira publicação é “A civilização do espetáculo - uma radiografia do nosso tempo e nossa cultura”, de Mário Vargas Llosa.
Para manter a coerência já que roubei da orelha do Barba
Azul (segue) o resumo de Eliot, é da Objetiva que copio o tema central do livro de Vargas Llosa. O Prêmio Nobel de Literatura em 2010, constrói seu livro falando da banalização das
artes e da literatura, o triunfo do jornalismo sensacionalista e a frivolidade
da política como características da sociedade contemporânea - a ideia temerária
de converter em bem supremo a natural propensão humana para o divertimento.
Em
"A civilização do espetáculo", o escritor diz que “no passado a cultura era uma
espécie de consciência que impedia que virássemos as costas para a realidade.
Hoje, lamenta Vargas Llosa, a cultura atua como mero mecanismo de distração e
entretenimento”. Para ele, “a ideia ingênua de que, através da educação, se
pode transmitir cultura à totalidade da sociedade, está destruindo a ‘alta
cultura’, pois a única maneira de conseguirmos essa democratização universal da
cultura é empobrecendo-a, tornando-a cada dia mais superficial”. Uma longa e
excitante discussão à vista para breve.
Mas, é "No Castelo do Barba Azul",
de Steiner, escrito vinte e três anos depois de Eliot e quarenta e três antes de Llosa, que busquei o tema
para esta reflexão.
Logo na primeira página, Steiner afirma que “cada nova era histórica se
espelha na imagem e na mitologia ativa de seu passado ou de um passado
emprestado de outras culturas. Ela põe em prova, em contraste com este passado,
seu sentido de identidade, de regresso ou de novas realizações. Os ecos pelos
quais uma sociedade procura determinar o alcance, a lógica e a autoridade de
sua própria voz vêm da retaguarda. Evidentemente, os mecanismos em ação são
complexos e enraizados em necessidades difusas, mas vitais, de continuidade.
Uma sociedade requer antecedentes”.
Uma sociedade requer
antecedentes.
Vamos ler de novo: uma sociedade
requer antecedentes.
Por um acaso, encontrei um disco– um LP , com uma gravação sob a regência do jovem Maestro Isaac Karabtchevsky, à
frente do grupo Madrigal Renascentista, de Belo Horizonte, onde começou sua
carreira.
Aliás, uma excepcional carreira, que o colocou à frente de todos os
músicos brasileiros do seu tempo.
Em 1999, regeu Boris Gounov, com Samuel Ramey, na Ópera de
Washington. Longe de mim imaginar esta como sendo sua consagração como regente
de ópera.
Claro que não. O maestro regeu e rege todas as grandes orquestras brasileiras. De
1988 a 1994 foi titular da Orquestra Tonkünstler de Viena. Regeu
concertos e óperas na Volksoper, na Staatsoper, no Musikverein, as melhores
salas de Viena.
Foi aplaudido em Amsterdã, no Concertgebouw, no Royal Festival Hall, em Londres, no Carnegie Hall, de Nova York, no TeatroReal – o El Real de Madrid, no Teatro Colón, o mítico teatro argentino. Na
Itália, Karabtchevsky foi diretor artístico do La Fenice, em Veneza. E lá trabalhou também durante todo o período de reconstrução do teatro após o incêndio que o destruiu. Lembro disto, porque já havia escrito sobre o maestro. Falei dos seus cabelos ao vento na Quinta da Boa Vista no
Rio de Janeiro, nos memoráveis concertos matinais dos domingos. Uma imagem de vigor na regência que poucas vezes vi em outros maestros. Nas condições improvisadas por que passava o La Fenice, nos encontramos durante uma Carmen. Ali percebi
que não eram apenas cabelos ao vento, mas também havia brilho nos olhos. Um detalhe que o
maestro nunca perdeu. As circunstâncias
nunca nos permitiram trabalhar juntos, mas conversamos várias vezes em Veneza,
no Rio, em São Paulo e em Porto Alegre onde também regeu a OSPA. Falamos sempre de música, de ópera, deste prazer que nos une, embora em caminhos
diferentes.
As principais interpretações de
Isaac Karabtchevsky no La Fenice, estão gravadas. Algumas destas versões são
memoráveis.
Tudo isto me veio rapidamente à
memória ao ver o LP do Madrigal Renascentista. No repertório, Exultate Deo (de
Alessandro Scarlatti), Ay luna que reluces (de Juan el Encina), Contraponto bestiale alla mente (de Adriano Banchieri), Rosa Amarela* (de Heitor Villa-Lobos) e Dona Janaína (de Francisco Mignone e Manuel Bandeira em arranjo do próprio Karabtchevsky) entre outras peças igualmente interessantes.
Em 27 de Dezembro e ainda na
ativa, em vigor pleno, Isaac Karabtchevsky completará 79 anos.
É impossível
dissociar da sua vida profissional o trabalho – o aprendizado – como diretor e
regente do Madrigal Renascentista. Este conjunto especializado num tipo de
repertório especifico, provavelmente influenciou o futuro como o maestro viria a conduzir as principais
orquestras de ópera europeias.
Os madrigais são essencialmente
os antecessores da ópera, trabalhando as possibilidades dramáticas do texto cantado. A versatilidade e exercícios de
estilo para seus integrantes, são uma característica importante dos Coros que
trabalham os madrigais, a música barroca, canções, um imenso repertório que vai
de Mozart a Fauré, de Handel a Stravinsky e muito além. Não raro, seus cantores
se tornam solistas de ópera ou mesmo migram para coros líricos. Essencialmente,
sua função está no sensível e delicado trabalho vocal buscando interpretar a
perfeita tradução do texto em música como criaram seus compositores. Por estas razões, já são mundialmente lendários grupos como o coro Monteverdi e o coro Accentus.
No Brasil, em São Paulo, o Coral
Paulistano foi criado com idêntica vocação,
por Mário de Andrade, na esteira dos eventos decorrentes da Semana de
Arte Moderna de 1922, com a missão de cantar música brasileira, levando-a ao
Theatro Municipal de São Paulo. Mais do que isto, o Coral Paulistano viria a se
tornar interprete de um eclético repertório que abre para as plateias
brasileiras referências essenciais para a consciência crítica, resultado típico
do conhecimento e da cultura.
Há um movimento no Theatro
Municipal de São Paulo para acabar com o Coral Paulistano, aparentemente
integrando seus cantores ao Coro Lírico do mesmo teatro.
Isto não pode acontecer.
É papel do Coral Paulistano continuar trabalhando repertório próprio no Theatro Municipal e é uma expectativa absolutamente coerente com
o perfil de São Paulo que sua atividade seja estendida às comunidades, nos
teatros de bairro, nos CEUs, e em outros espaços públicos.
Sua atuação é facilitadora
da compreensão da própria ópera, missão do Theatro Municipal onde o Coral
Paulistano está abrigado.
A permanência do Coral Paulistano e ampliação do
seu relevo é condição estratégica para a própria atividade fim do Theatro
Municipal de São Paulo e foge da minha compreensão como se pode cogitar a sua extinção.
Citando Vargas Llosa, claro que o “desejo de cultura” e
a capacidade de escolha é fórum individual do cidadão, mas só uma sociedade muito doente
permite que quem está no comando, qualquer que seja o nível, despreze os seus
reais valores culturais.
Portanto, é responsabilidade de todos os que concordam com esta linha de raciocínio a defesa destes valores e deste ponto de vista. Não podemos permitir que isto aconteça.
É moderno, é inteligente, é contemporâneo se pensar
que o principal papel da cultura e dos seus agentes é reconhecer o diferente
como coletivamente igual. Não se faz surgir do nada o interesse individual por
valores diferentes. É um longo processo de construção. O pensamento intelectual, a reflexão e ações consequentes podem promover mudanças sociais.
A ópera precisa de um amplo e alargado conjunto de atividades que se interligam e convergem para a mesma finalidade. No minha visão, o Coral Paulistano é parte essencial deste longo processo de contribuição que a ópera, como forma de expressão, de desenvolvimento profissional e de interesse coletivo, pode oferecer.