quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

Nota de Rodapé (12)



Relutando muito, decidi romper o silencio autoimposto para o merecido descanso do blog. Afinal, a saída do maestro da Cia como dito no seu blog em 4/01/2011 é um fato relevante para o gênero e tendo comentado neste blog o seu início (13/11/2009), é natural que o faça neste instante de encerramento.


Antes porém, um novo e longo habeas corpus preventivo: não me proponho a ser crítico de ópera (não mais lembrarei isto no blog); não sou xenófobo (acredito e defendo a arte sem fronteiras, o aprendizado com quem sabe etc.); não tenho inveja (ou qualquer coisa parecida) do projeto, bastando reler as razões porque discordei de alguns aspectos da sua implantação; sempre mantive uma relação pessoal de recíproca cordialidade com o maestro; e, finalmente, desnecessário afirmar em outras circunstâncias, defendo a ópera como gênero e como atividade de formação de plateias, de formação e aperfeiçoamento de artistas e técnicos.

Acho lamentável que qualquer iniciativa cultural deixe de dar certo.

Produzir ópera num modelo de circulação nacional é uma tarefa complexa, possível dentro de alguns parâmetros de produção e solucionável desde que sejam tomados certos cuidados artísticos e técnicos.

Li e reli várias vezes o post do maestro sobre sua saída. As entrelinhas não batem, quase tanto quanto não batiam as informações quando do lançamento em novembro de 2009. 


Como seria possível a estreia de um espetáculo poucos meses depois do lançamento com um projeto baseado numa cenografia eletrônica de animação com duração de mais de duas horas? Como conciliar tantos intérpretes (eram vários regentes nacionais que se transformaram em estrangeiros durante a execução do projeto)? Como conciliar agenda dos teatros, muitas vezes utilizados para várias outras atividades? 


Como colocar no mesmo planejamento, uma produção estanque baseada em cenário virtual (projeção de vídeo) e teatros de tamanhos tão desiguais, com estruturas físicas tão díspares? Como trabalhar com uma equipe contendo basicamente estrangeiros na criação, com cenógrafo distante da nossa realidade, sem conhecimento prévio dos nossos teatros, das suas perspectivas de plateia? Que direção sobreviveria engessando o cantor a trabalhar em função da animação? De que maneira conseguir uma iluminação de qualidade considerando equipamentos disponíveis no país e as diferentes condições dos teatros e o inevitável conflito de fontes de luz em contraponto? 


Como transformar a tal solução de “efeitos cênicos de grande comicidade e teatralidade inalcançáveis em encenações convencionais“ como foi dito no lançamento, de balela fantasiosa e previsível em algo que não fosse uma direção sofrível, engessando os bons cantores, de resultado sonolento, desigual, irregular? Como produzir tudo isto sem experiência anterior na produção de espetáculos, na circulação, numa tarefa de tão grande porte? 


De que forma administrar tudo isto, incluindo comunicação, transporte de pessoas e coisas, hospedagem, alimentação, e o volume de recursos envolvido, aparentemente adequado para tal iniciativa, dentro das normas contábeis normalmente aceitas, nas regras do sistema de convênios, ou da própria Lei Rouanet? 


A curiosidade de aprender com as soluções não resistia ao bom senso. Tudo indicava que estas e outras questões primárias não estavam respondidas na origem e que o projeto, sem isto, estaria condenado a ter inúmeros problemas artísticos, com riscos de extrapolar em custos etc. Acontecido o caos, não adiantaria atribuir a culpa às circunstâncias comerciais ou a alguns dos agentes das perguntas acima, mas à falta de planejamento adequado, à estratégia adotada e mesmo aos dirigentes da iniciativa.

A ópera é um grande ensemble que depende de uma relação dinâmica entre regente, orquestra, cantores, coro, cenotécnica, iluminação já que tudo isto se relaciona ao vivo, com variações de interpretação a cada dia. Esta é a mágica da ópera: a cada dia nova percepção da música, do texto teatral. Já o cinema, a grosso modo, são imagens com uma dinâmica própria, mas fixas no tempo, com uma trilha fixa. Sem entrar na tecnicidade dos timecodes, dos playlists de correção, coisas óbvias para quem é do ramo, o partido adotado não é solução viável para integração entre desenho animado e grupos artísticos diferentes atuando ao mesmo tempo. Conheço pelo menos três soluções bem sucedidas, convergindo as duas linguagens, todas mantendo o espetáculo, a dinâmica da ação sob controle. 


Fiquei intrigado quando do lançamento e incomodado com o resultado, porque, naturalmente, considerando o meu envolvimento com a ópera, torci pelo projeto. Justiça seja feita à qualidade artística dos cantores e da orquestra formada por músicos atuantes em vários outros conjuntos. 


O projeto seguiu em frente, com mudança da cidade de lançamento, adiamento, e certamente, como depreendido do texto do maestro, com todo o tipo de erros decorrentes da incapacidade de se resolverem coisas insolúveis como aquelas indagações iniciais.

Espero que prevaleça a sensibilidade e racionalidade e que os problemas da Cia não venham a prejudicar a difícil tarefa de se obter recursos para a produção de ópera no Brasil onde, graças à diversidade estrutural, a convivência de modelos híbridos de produção (privada e estatal) é imprescindível.

A ideia de se fazer uma companhia de ópera (várias) no Brasil não é nova. Já participei de algumas discussões sobre isto algumas vezes e, com recuos e avanços, tenho a certeza de que há estratégias possíveis para que isto aconteça. Neste momento mesmo, existem ações em curso. Um ano e meio antes da Cia apresentei projeto de circulação a várias entidades, incluindo, por razões óbvias da popularidade, o Barbeiro de Sevilha (veja a marquinha), com proposta artística e técnica radicalmente diferente do modelo colocado em prática (pela cia) e discutimos com várias pessoas o caminho para se viabilizar o projeto. Não se avançou naquele momento e, claro, outros títulos deverão ser pensados para o futuro.

Tudo isto com uma estratégia criativa adequada à realidade brasileira, tão difícil de ser compreendida, mas muito estudada, com características e necessidades mapeadas e identificadas.

Saber que ao tempo certas questões estruturais serão resolvidas se mantivermos a coerência, a discussão e o diálogo multidisciplinar, de certo modo compensa os incômodos que persistem em aparecer quando se lê nas entrelinhas da “carta de despedida do maestro”. Registre-se que lamento não ver entre os “agradecidos” pelo menos um nome de um artista nacional, de um regente que seja, o que me parece, converge com os desvios de rota do projeto. Temos no Brasil artistas e técnicos de grande qualidade e vários regentes com maturidade e experiência em ópera, sendo perfeitamente possível agregar esforços para projetos desta natureza, o que certamente contribui para manter melhor controle de custos, redução de despesas etc.

Também não concordo com a redução do povo a “compradores de geladeiras”.

O processo é este mesmo. Depois da geladeira, do celular, será o perfume. E qual é o problema? Com recursos, cabe ao indivíduo o direito de escolha do que deseja adquirir. Não se impõe Cultura goela abaixo, e isto não significa que o direito de acesso não deva ser franqueado. Pelo contrário, é papel do Estado a franquia de direitos sociais e políticos. 


Trocando em miúdos, é papel estimular e promover a alfabetização para as artes, desenvolver programas de formação, estabelecer parcerias com iniciativas sérias, sólidas, comprometidas com estes objetivos sociais. Numa sociedade com problemas estruturais tão graves nas áreas da educação, da saúde, de meio ambiente, na cultura não é diferente. Temos que correr contra o tempo, fazer reformas em todos os níveis, lutar arduamente para reduzir diferenças, superar a fase das geladeiras e promover o desenvolvimento individual em benefício do coletivo. Trabalhar nas bases, falar, ensinar, exibir, propor, franquear acesso, demonstrar as convergências possíveis entre as artes, favorecer o direito de escolha.

Não podemos duvidar disto, nem podemos nos afastar disto. Podemos discutir, acrescentar, dialogar. Mas sem duvidar, nem ficarmos à distância. A “cultura das elites” só é vista assim onde se errou e se erra ao não favorecer, ampliar ou estimular o acesso, seja através da linguagem ou ações mais simples como, por exemplo, de ingressos gratuitos quando possível e em proporcionalidade ao dinheiro público envolvido.

A ópera – a Cultura Erudita – é um bem precioso demais para ficar ao sabor das veleidades individuais, devendo ser tratada como um bem coletivo, de ratificação dos princípios elementares dos direitos do cidadão.