quarta-feira, 10 de março de 2010

Dilemas contemporâneos da Cultura (2)

Bahia, 1971
de Hector Júlio Páride Bernabó (Carybé)


Se a reorientação econômica consequente ao golpe militar de 64 de fato implicou no crescimento do parque industrial brasileiro e do mercado interno, de direito, com a supressão das liberdades individuais e da livre expressão do pensamento, criou-se um monstrengo alienado em que a base do mercado de bens culturais estabeleceu-se a partir do favorecimento da cultura de massas em detrimento da chamada produção cultural erudita, gradativamente relegada a segundo plano.
Pobre direito este que privou a nação do aprendizado de música nas escolas e lhe garantiu o acesso ao sofá das tardes de domingo sonolentamente embaladas pelos intermináveis programas de variedades, enlatados de validade vencida e tragicomédias destituídas de valores críticos que não aqueles permitidos pela ordem vigente.
É neste aspecto que reside a crueldade do modelo que exclui o conteúdo. Valoriza a quantidade e a forma que se desenvolva em certo padrão de qualidade aqui assinalado pelo seu caráter asséptico e de "identidade universal" na contramão da Cultura como manifestação dos aspetos particulares de uma determinada sociedade.
A opção é capitalista no seu sentido mais avançado de apropriação da informação e deformação dos bens culturais em si, na medida em que se tornam meros apêndices de uma estética construída por tecnologia.

Na televisão, por exemplo, usando uma linguagem aparentemente de valores nacionalistas e de integração nacional, deixa-se de lado qualquer hipótese do pensamento regional, das diferenças, das formas de pensamento, da Cultura do diverso. O pensamento regional é manifestamente um suporte exótico para a experimentação da forma. O mesmo vale para as apropriações do pensamento estrangeiro.

Estabelece-se um padrão gerado a partir de São Paulo e Rio de Janeiro que perdura, bastando para isto observarmos as vozes dos jornalistas em rede nacional em que se busca eliminar qualquer sotaque ou acentuação própria. Não fosse esta a menor questão no problema, poderíamos discutir o quanto é prejudicial para a nação a falta desta consciência crítica que surge a partir da padronização da fala*.

Não deixa de ser curioso o Brasil ser um exportador de televisão, ter ganho prêmios mundiais pelo alto padrão de qualidade, ser reconhecido como um país de excelência na criação e cinema publicitários. Isto significa na prática ser um país detentor de tecnologias e de profissionais numa área de ponta da cultura da imagem.

Entretanto, nossa herança não nos dá um cinema produzindo com qualidade em quantidade, porque o modelo implantado não privilegiou o conteúdo e coibiu toda e qualquer prática que viesse a permitir a prevalência do pensamento e sua distribuição republicana.

Herança que nos impede de avançar concretamente no mercado global de bens culturais em atividades fundamentais e estratégicas de cultura.

Este enigma ancestral exige rápidas medidas corretivas.

A primeira delas é a consciência de que o problema existe e é grave. A segunda e, em seguida, é preciso repensar a organização para a ação tanto no âmbito do poder público (nos níveis Municipal, Estadual e Federal) quanto da própria sociedade (Consumidores e Produtores de Cultura: artistas técnicos e realizadores). Esta ação deve reformular o pensamento.

Volto ao tema amanhã.


*em parte dos Estados Brasileiros, na defesa da chamada "cor local" - esta demagógica, corrupta e xenófoba forma de gestão - criam-se programas que abrigam toda forma de apaniguados, de estruturas de favores, reproduzindo nos organismos de cultura microcosmos similares aos de outras instâncias de governo. Isto é péssimo principalmente por criar a ilusão de qualidade e aprendizado. Não há aprendizado sem troca de experiências e sem mestre. E o que é ainda pior, acaba por não desenvolver estruturas criativas e de produção de forma adequada, em sintonia com as necessidades e perspectivas economicas do país.