quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

Dilemas Contemporâneos da Cultura (105)





O mundo continua precisando de poesia.

Em 2011, escrevi um texto para um site (que não mais existe) colocando em discussão e me colocando a favor de um projeto que envolvia a produção e publicação na internet de 365 vídeos (um para cada dia do ano) em que a cantora Brasileira Maria Bethânia interpretava poesias de vários autores e, de quebra, falava um pouco sobre a agressividade de determinadas opiniões. 
Levei "pau" como se diz. Várias pessoas publicaram justificativas contundentes e opiniões tão absurdas e tão despreparadas que não me restou outra coisa a não ser pacientemente rir de tudo aquilo. 
A questão na época e que prevalece até hoje é quanto ao direito de qualquer empresa pleitear recursos públicos para a realização de projetos na área da Cultura dentro das regras vigentes. Além disto, também remexo na maneira como muitas opiniões são oferecidas sem que se tenha uma base sólida de conteúdo para sua fundamentação. 

Para resumir, o tempo passou. O Brasil não ganhou as poesias recitadas pela Bethânia gratuitamente. O Brasil perdeu, a poesia perdeu, a Língua Portuguesa perdeu, os leitores perderam, os jovens deixaram de ter uma referência concreta e permanente da poesia no Brasil. 

Mas, felizmente há sempre um mas, Bethânia conseguiu editar um magnifico livro de poesias e um precioso dvd. Veja a edição da Editora UFMG e compre pelo menos dois exemplares do livro: um para você e outro para um amigo.  

Para quem não leu em 2011 ou para quem quer recordar, não tendo encontrado o link do site original, segue o texto que publiquei na versão da época:

O mundo precisa de poesia
Convenhamos que é uma ótima ideia “produzir e alimentar um blog durante um ano, com publicação diária de vídeos inéditos; atrair aproximadamente 6.000 (sic) visitantes diariamente; estimular a formação de público de leitores; estimular a discussão, na rede, sobre poesia e literatura; propiciar o contato e interação de jovens com literatura brasileira; estimular artistas de diferentes áreas a produzir conteúdo baseado em poesias e textos; produzir material audiovisual de grande qualidade técnica e artística; reunir uma equipe altamente capacitada e experiente para realizar o projeto; multiplicar resultados, estimulando o compartilhamento do conteúdo dos vídeos em outras redes, como YouTube, Facebook, Twitter e Orkut”.

Originada dos calendários destacáveis com frases e imagens diárias, a ideia de postar na internet vídeos diários gratuitamente, com uma artista do quilate da cantora Maria Betânia e em paralelo promover a discussão e a difusão da poesia sob todas as formas, é um pequeno ovo de Colombo.

Aí está uma ideia que eu gostaria de ter tido.

Junte-se a isto uma produtora (Conspiração) de reconhecido e exemplar portfólio. Temos então um projeto cultural na lei do audiovisual bem-sucedido?

Não. Antes falta o dinheiro que só virá se os produtores conseguirem convencer alguma empresa a apoiar o projeto repassando parte do seu imposto a pagar.

Bastou, no entanto, que se divulgasse a aprovação do projeto pelo Ministério da Cultura e sin sala bin, num passe de mágica, tivéssemos uma enorme e furiosa batalha na internet com acusações, insinuações, discordâncias. Mágoa, muita gente magoada. Muita inveja. Um sofrimento de fazer dó. Palavrões no twitter xingando a cantora, ministro da Cultura, ódio represado.

É assustador. Tem alguma coisa muito errada neste processo.

Desde quando a cultura no Brasil não precisa de incentivos e apoio do Estado? Tente qualquer um ir a uma empresa e oferecer um projeto cultural qualquer sem incentivo e veja se consegue.

Pode ser até que a Maria Betânia e a Conspiração Filmes consigam convencer agências e empresas e patrocinarem o blog com verbas próprias. Ótimo. Seria maravilhoso para a cultura e para a poesia.

E qual o problema do recurso ser incentivado? Neste caso, deve ser incentivado porque basta olhar o que as empresas – o mercado – têm feito pela poesia no Brasil. Perguntem aos poetas o quanto de dinheiro conseguiram privadamente para viabilizar suas ideias nos últimos 20 anos.

Além das suposições de praxe das relações entre a cantora irmã* e a ministro irmã*, insinuações de protecionismos, a guerrilha também põe em xeque os valores apropriados no projeto, colocando no rol das atividades criminosas ganhar-se dinheiro com o sucesso, com o resultado de anos de trabalho.

Vamos a uma curta análise. Quanto representa de trabalho pesquisar e definir 365 poesias, selecionar trechos, estudar o autor, estilo, atmosfera proposta por poema, definir 365 diferentes interpretações, estudar decorar e ensaiar algo em torno de 1.095 minutos de texto (18 horas aproximadamente)? Quanto representa de trabalho responsabilizar-se por tudo isto mantendo padrões de qualidade, acompanhando as intermináveis horas de edição, de pós-produção? Quanto representa a associação da imagem pessoal da artista ao projeto?

As perguntas acima referem-se exclusivamente a questões de direção artística do projeto.

Pois bem. Várias pessoas criticaram os valores atribuídos ao trabalho da intérprete e diretora. Houve até quem dissesse que se fosse outro nome, o projeto não seria aprovado. Ou ainda que o valor é muito alto e que a cantora não vale isto. A fila de absurdos vai além, discutindo-se inclusive se os prazos de dedicação ao projeto valem isto ou aquilo. As mesmas pessoas que aceitam com tranquilidade o valor da marca de um refrigerante, ou de um tênis famoso, são incapazes de atribuir valor à “marca” de um artista, ao seu valor simbólico e, por que não, o seu valor comercial.

Observe como é complexa a questão. Trata-se de discriminação ao contrário. Os críticos da iniciativa fazem uma inversão doentia argumentando que é protecionismo, que o projeto não se sustentaria com um nome desconhecido – este sim merecedor de apoio. Reprovam/condenam o fato concreto da aprovação do projeto lastreado num nome conhecido de inquestionáveis méritos artísticos, de ligação pessoal com a poesia e merecedor de remuneração justa pelo valor que agrega ao projeto. Nesta maneira de pensar, preferem deixar de lado o que é bom, responsável, reconhecido, meritório e valorizar o que é duvidoso, desconhecido. Os críticos desta iniciativa esquecem que também na cultura há um processo em curso. O que é novo deve ser incentivado na medida do seu tamanho.

Há poucos dias recebi um comentário discordando de um texto que publiquei onde ressaltava serem necessários cursos de preparação de gestores que considerem os princípios gerais da economia, da administração pública, acrescentando que, mesmo cumprida esta etapa, precisaríamos dar tempo a estas pessoas adquirirem experiência/vivência de gestão. Para alguns, basta um indivíduo fazer um curso e estar pronto para ser gestor de um projeto, uma empresa, um órgão governamental. Parece que não entra na cabeça das pessoas que maturidade artística, administrativa é importante e que, sobretudo na atividade cultural, erudição se obtém pela experimentação, repetição, aprendizado.

Talvez a velocidade com que as coisas acontecem na nuvem levem a estes julgamentos apressados. Talvez a falta de balizamento, a falta de quem diga o que é certo ou errado, do que é bom ou ruim, leve alguns a dizerem o que primeiro lhes passa pela cabeça. Devem também existir outros que, sem qualquer pudor, criam ou aproveitam a onda para fazer prevalecerem seus próprios interesses, mas isto é outra história.

O foco aqui é este fenômeno de distorção de valores, do exagero na crítica, do excesso raivoso.

Situação semelhante acontece com o tsunami envolvendo o jovem cartunista João Montanaro, 14 anos, e sua charge publicada no dia 12/3 na Folha de São Paulo.

Ao desenhar uma onda devastando uma cidade japonesa, escolhendo como tema/modelo uma xilogravura de Katsushika Hokusai criada entre 1830 e 1833, o cartunista foi alvo de elogios, mas de críticas de leitores, sendo inclusive xingado por colegas na escola onde estuda.

Como publicado na FSP de 17/3, o pesquisador Gonçalo Júnior, autor do livro “A Guerra dos Gibis”, “vivemos na era da chatice e do politicamente correto. É uma reação paranoica, o desenho retrata as mesmas coisas que todos estes vídeos que estão no YouTube”.

Neste caso, o mais provável é que os críticos não conseguiram atingir o nível de leitura proposto pelo desenho. Para entender o que foi feito é necessário um mínimo de alfabetização para as artes e a capacidade de perceber que o cartunista pegou um ícone da arte japonesa, justamente uma gravura representando uma onda e acrescentou destroços. Por pura ignorância, alguns furiosos não o condenaram por plágio. Definitivamente aquele não era um trabalho de humor e esta foi a leitura rasa que levou à condenação do autor.

Ou seja, este caso e o outro são situações diferentes, mas a mesma matriz de falta de bom senso, de excessos desnecessários.

O projeto cujo título é o mesmo deste artigo, é bem-vindo. O mundo precisa mesmo de poesia.

Quando a argumentação é baseada em berros, não há o que contra argumentar. Quando uma sociedade começa a espernear aos chutes e pontapés é recomendável o recuo, sob o risco de todos colocarem a mesma carapuça de burrice dos que fazem a crítica. 


(*) a cantora é irmã de Caetano Veloso e a Ministro era Ana de Holanda, irmã de Chico Buarque, duas figuras polêmicas e hoje frequentemente associadas a questões de ordem política. Ressalto que este texto se refere fundamentalmente à perspectiva de que qualquer artista pode (e deve) ter o direito de se valer de recursos públicos para executar seu trabalho. Se há alguma falcatrua, má utilização de recursos existem instrumentos legais para verificar isto. Também ressalto que a análise em questão nada tem a ver com as posições políticas e pessoais dos citados e não estão em xeque as eventuais discordâncias nesta área entre eles e este autor.