quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Dilemas Contemporâneos da Cultura (86)

Coxia de teatro, durante espetáculo de Ópera Curta
foto por Cleber Papa
Wallace K. Harrison projetou a sala de espetáculos da Metropolitan Opera em New York, em dimensões proporcionais à importância mundial da casa. São 3.975 lugares.
O Met possui cerca de 860 empregados fixos, podendo ter este número ampliado conforme as necessidades durante o ano. O núcleo artístico emprega em torno de 100 músicos na orquestra, 80 membros regulares no coro e 16 membros no ballet. Cada um destes grupos pode aumentar dependendo das necessidades de cada temporada que equilibra repertório com e sem partes corais etc. Lembremos que o Metropolitan chega a ter 30 óperas no repertório por ano (segue). Com este programa de óperas, concertos e outras performances, no seu momento de pico, na temporada, o seu coro é ampliado em no máximo 30 cantores contratados externamente.  No seu formato, o Met desenvolve inúmeras atividades inclusive programas destinados a identificar jovens cantores em 16 regiões diferentes e auxiliá-los no desenvolvimento de suas carreiras.
Nos teatros de ópera Europeus, temos características que guardam certa semelhança, preservadas as dinâmicas de cada teatro ou sociedade.A Royal Opera House (Covent Garden) com 8 operas e 8 ballets anualmente, possui 53 cantores fixos no coro e contratam até 60 se necessário.O Theatro Nacional de São Carlos possui tradicionalmente 62 coralistas fixos. A Ópera Nacional de Paris possui um coro de 112 vozes para atender apresentações em dois teatros (Paris-Garnier e Ópera da Bastille). A Bastille apresenta 13 óperas em média por ano e 6 ballets. A Paris-Garnier é o inverso com cerca de 14 ballets e 6 óperas. Seguindo o exemplo do Metropolitan, a Ópera Nacional de Paris também está gravando alguns espetáculos e os apresenta em transmissões exclusivas em vídeo, em diversos países.O Gran Teatro del Liceu tem 70 cantores no coro com cerca de 9 óperas por ano. O Teatro Alla Scala, de Milão, possui um coro de 103 vozes, com 16 óperas na temporada de 2012/2013, sem considerar as atividades para jovens. A centenária  Wienner Staatsoper, em Viena, possui 95 cantores, e a Volksoper pouco mais de 60. Em Kalsruhe, na Alemanha, são 53 coralistas também contratando extras quando necessário.Ainda na Alemanha, Duisburg e Dusseldorf são duas cidades interligadas pela mesma companhia de ópera e possuem 64 coralistas que se revezam entre os dois teatros. Na Alemanha, de um modo geral, os coros líricos giram no limite entre 60 e 70 vozes.
O Teatro Colón na Argentina possui 90 coralistas estáveis (funcionários da municipalidade de Buenos Aires) com 20 a 25 acréscimos quando necessitam para atender algumas das suas 9 produções anuais. No Chile, o teatro de Santiago possui 58 coralistas para os seus 6 títulos apresentados.
Todos estes teatros têm seu modelo de atuação, ora criando suas próprias produções, ora trabalhando em regime de coprodução e vários deles com corpos de solistas fixos. Na sua programação, é comum programas de formação de plateias, de jovens cantores, além dos programas rotineiros de outros corpos artísticos dos teatros. 
Desta constatação fica a indagação de qual modelo seria o ideal para teatros Brasileiros. Acredito que, consultados, os profissionais da área na sua grande maioria, concordam que salvaguardadas as características de cada teatro, o tamanho do coro terá uma relação muito estreita com as dimensões do próprio espaço e o tipo de repertório adequado. A programação destes teatros deveria equilibrar possibilidades financeiras, recursos técnicos e artísticos disponíveis, expectativas do público, interesses artísticos do grupo de decisão de repertório entre outros aspectos. Divergências pontuais aqui e ali, todos com certeza estariam fechados com a ideia de que é fundamental identificar e se desenvolver carreiras de artistas nacionais, criar núcleos de aperfeiçoamento com professores de língua estrangeira e preparadores de corpo entre vários outros, sendo estratégico fomentar a produção local, exigindo-se de todos padrões de qualidade em níveis internacionais.
É preciso cautela quando se fala isto no Brasil, pois menos desavisados imediatamente desfraldam bandeiras contra o xenofobismo. Uma ova. Lembro que há pouco tempo participei de uma discussão em que estava em jogo o uso da lei de incentivos federal para o financiamento de projetos culturais estrangeiros. A discussão era o oposto. Lá se dizia que o dinheiro público só poderia financiar projetos nacionais. Obviamente, fui contra e bati teclas durante várias laudas a respeito uma vez que um projeto nacional para a cultura implica em referenciar. Acredito piamente na troca de experiências, no acesso à informação que vem de fora como sendo fundamental para o desenvolvimento cultural. Sem me alongar nisto, fiquei no limite do que é possível de paciência argumentando que um grande solista de ópera, o espetáculo de um bom diretor, a oportunidade de debate com um cineasta, um ator, um maestro, a apresentação de uma grande orquestra ou de grupos de câmara importantes, o subsídio aos festivais internacionais, inclusive das artes de massa, tudo isto é parte da dinâmica do fomento ao saber e é essencial que todas as fontes de financiamento sejam utilizadas com parâmetros definidos, mas não impeditivos do intercâmbio.
Isto não significa que não defendo com veemência o investimento na produção nacional e na formação de artistas e técnicos.
Imaginemos uma situação insólita em que do dia para a noite, um teatro de ópera perde todos os seus técnicos, ou todos os seus músicos, ou, de repente, seus coralistas desaparecem por força de um raio extraterrestre. Imaginem o que representa de perda de tempo, de recursos, de história se, por qualquer circunstância alienígena, some parte da memória desta instituição. Ou, na ausência deles, a dificuldade em encontrar pessoas com formação que permita tocar o dia seguinte.

Acabada a síndrome de Doctor Who, registre-se novamente a convicção da necessidade de fortalecimento das nossas instituições culturais através das pessoas que ali trabalham ou que potencialmente podem contribuir para o seu resultado, com investimento permanente na formação. A ópera é um bem importantíssimo para o crescimento profissional de muita gente e pode, inclusive, dar uma enorme contribuição a outras formas de expressão, em particular na área técnica. 

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Nota de Rodapé (20)

Batuta

Um amigo comentou comigo não ter gostado do Dilemas Contemporâneos da Cultura (85) porque citei o maestro Isaac Karabstchevsky, hoje diretor artístico do Theatro Municipal do Rio de Janeiro cuja programação, ou falta dela - é alvo de críticas. Como ele não quis se expor com receio de retaliação ou coisa parecida, respeito, mas aproveito o mote para uma reflexão.
Disse a ele, da mesma maneira direta, que não faço citações de pessoas com objetivos de melhorar ou denigrir imagens. Acho que todos somos maduros o suficiente para termos sustentação naquilo que já fizemos e parto do principio que pessoas deveriam aprender com seus erros. 
Quanto ao maestro Isaac, tenho por ele um respeito enorme pelo que construiu durante a sua longa carreira e o texto apenas teve como objetivo demonstrar que o mais bem sucedido profissional brasileiro nesta área começou sua projeção pessoal a partir do Madrigal Renascentista: essencialmente, um grupo com características que o aproximam do Coro Paulistano, alvo de uma fusão, para mim indesejada e inadequada, com o Coral Lírico na cidade de São Paulo. Com isto, ofereci mais um argumento sobre a importância do desenvolvimento também de regentes que passam por grupos como estes. 

Aliás, esta notinha, não passa de um lembrete de rodapé sobre esta trágica possibilidade cogitada de fusão.


sábado, 5 de outubro de 2013

Dilemas Contemporâneos da Cultura (85)

A rosa amarela tem vários significados. 
Aqui é também memória e homenagem divertida à história.


Em 1948, três anos após o final da segunda guerra, T.S. Eliot publicou um apelo à ordem em meio a uma Europa ferida e despedaçada que denominou “Notas para a definição da cultura”. Assim escrito como introdução, a Companhia das Letras apresenta “No Castelo de Barba Azul”, de George Steiner, um livrinho importante que integra a trilogia essencial para a compreensão das redefinições de cultura no nosso Século. A terceira publicação é “A civilização do espetáculo - uma radiografia do nosso tempo e nossa cultura”, de Mário Vargas Llosa.
Para manter a coerência já que roubei da orelha do Barba Azul (segue)     o resumo de Eliot, é da Objetiva que copio o tema central do livro de Vargas Llosa. O Prêmio Nobel de Literatura em 2010, constrói seu livro falando da banalização das artes e da literatura, o triunfo do jornalismo sensacionalista e a frivolidade da política como características da sociedade contemporânea - a ideia temerária de converter em bem supremo a natural propensão humana para o divertimento. 
Em "A civilização do espetáculo", o escritor diz que “no passado a cultura era uma espécie de consciência que impedia que virássemos as costas para a realidade. Hoje, lamenta Vargas Llosa, a cultura atua como mero mecanismo de distração e entretenimento”. Para ele, “a ideia ingênua de que, através da educação, se pode transmitir cultura à totalidade da sociedade, está destruindo a ‘alta cultura’, pois a única maneira de conseguirmos essa democratização universal da cultura é empobrecendo-a, tornando-a cada dia mais superficial”. Uma longa e excitante discussão à vista para breve.
Mas, é "No Castelo do Barba Azul", de Steiner, escrito vinte e três anos depois de Eliot e quarenta e três antes de Llosa, que busquei o tema para esta reflexão.
Logo na primeira página, Steiner afirma que “cada nova era histórica se espelha na imagem e na mitologia ativa de seu passado ou de um passado emprestado de outras culturas. Ela põe em prova, em contraste com este passado, seu sentido de identidade, de regresso ou de novas realizações. Os ecos pelos quais uma sociedade procura determinar o alcance, a lógica e a autoridade de sua própria voz vêm da retaguarda. Evidentemente, os mecanismos em ação são complexos e enraizados em necessidades difusas, mas vitais, de continuidade. Uma sociedade requer antecedentes”.
Uma sociedade requer antecedentes. 
Vamos ler de novo: uma sociedade requer antecedentes.
Por um acaso, encontrei um disco– um LP , com uma gravação sob a regência do jovem Maestro Isaac Karabtchevsky, à frente do grupo Madrigal Renascentista, de Belo Horizonte, onde começou sua carreira. 
Aliás, uma excepcional carreira, que o colocou à frente de todos os músicos brasileiros do seu tempo. 
Em 1999, regeu Boris Gounov, com Samuel Ramey, na Ópera de Washington. Longe de mim imaginar esta como sendo sua consagração como regente de ópera.
Claro que não. O maestro regeu e rege todas as grandes orquestras brasileiras. De 1988 a 1994 foi titular da Orquestra Tonkünstler de Viena. Regeu concertos e óperas na Volksoper, na Staatsoper, no Musikverein, as melhores salas de Viena. 
Foi aplaudido em Amsterdã, no Concertgebouw, no Royal Festival Hall, em Londres,  no Carnegie Hall, de Nova York, no TeatroReal – o El Real de Madrid, no Teatro Colón, o mítico teatro argentino. Na Itália, Karabtchevsky foi diretor artístico do La Fenice, em Veneza. E lá trabalhou também durante todo o período de reconstrução do teatro após o incêndio que o destruiu. Lembro disto, porque já havia escrito sobre o maestro. Falei dos seus cabelos ao vento na Quinta da Boa Vista no Rio de Janeiro, nos memoráveis concertos matinais dos domingos. Uma imagem de vigor na regência que poucas vezes vi em outros maestros. Nas condições improvisadas por que passava o La Fenice, nos encontramos durante uma Carmen. Ali percebi que não eram apenas cabelos ao vento, mas também havia brilho nos olhos. Um detalhe que o maestro nunca perdeu. As circunstâncias nunca nos permitiram trabalhar juntos, mas conversamos várias vezes em Veneza, no Rio, em São Paulo e em Porto Alegre onde também regeu a OSPA. Falamos sempre de música, de ópera, deste prazer que nos une, embora em caminhos diferentes.
As principais interpretações de Isaac Karabtchevsky no La Fenice, estão gravadas. Algumas destas versões são memoráveis.
Tudo isto me veio rapidamente à memória ao ver o LP do Madrigal Renascentista. No repertório, Exultate Deo (de Alessandro Scarlatti),  Ay luna que reluces (de Juan el Encina), Contraponto bestiale  alla mente (de Adriano Banchieri), Rosa Amarela* (de Heitor Villa-Lobos) e Dona Janaína (de Francisco Mignone e Manuel Bandeira em arranjo do próprio Karabtchevsky) entre outras peças igualmente interessantes.
Em 27 de Dezembro e ainda na ativa, em vigor pleno, Isaac Karabtchevsky completará 79 anos. 
É impossível dissociar da sua vida profissional o trabalho – o aprendizado – como diretor e regente do Madrigal Renascentista. Este conjunto especializado num tipo de repertório especifico,  provavelmente influenciou o futuro como o maestro viria a conduzir as principais orquestras de ópera europeias.
Os madrigais são essencialmente os antecessores da ópera, trabalhando as possibilidades dramáticas do texto cantado. A versatilidade e exercícios de estilo para seus integrantes, são uma característica importante dos Coros que trabalham os madrigais, a música barroca, canções, um imenso repertório que vai de Mozart a Fauré, de Handel a Stravinsky e muito além. Não raro, seus cantores se tornam solistas de ópera ou mesmo migram para coros líricos. Essencialmente, sua função está no sensível e delicado trabalho vocal buscando interpretar a perfeita tradução do texto em música como criaram seus compositores. Por estas razões, já são mundialmente lendários grupos como o coro Monteverdi e o coro Accentus
No Brasil, em São Paulo, o Coral Paulistano foi criado com idêntica vocação,  por Mário de Andrade, na esteira dos eventos decorrentes da Semana de Arte Moderna de 1922, com a missão de cantar música brasileira, levando-a ao Theatro Municipal de São Paulo. Mais do que isto, o Coral Paulistano viria a se tornar interprete de um eclético repertório que abre para as plateias brasileiras referências essenciais para a consciência crítica, resultado típico do conhecimento e da cultura.
Há um movimento no Theatro Municipal de São Paulo para acabar com o Coral Paulistano, aparentemente integrando seus cantores ao Coro Lírico do mesmo teatro.
Isto não pode acontecer.
É papel do Coral Paulistano continuar trabalhando repertório próprio no Theatro Municipal e é uma expectativa absolutamente coerente com o perfil de São Paulo que sua atividade seja estendida às comunidades, nos teatros de bairro, nos CEUs, e em outros espaços públicos. 
Sua atuação é facilitadora da compreensão da própria ópera, missão do Theatro Municipal onde o Coral Paulistano está abrigado.
A permanência do Coral Paulistano e ampliação do seu relevo é condição estratégica para a própria atividade fim do Theatro Municipal de São Paulo e foge da minha compreensão como se pode cogitar a sua extinção. 
Citando Vargas Llosa, claro que o “desejo de cultura” e a capacidade de escolha é fórum individual do cidadão, mas só uma sociedade muito doente permite que quem está no comando, qualquer que seja o nível, despreze os seus reais valores culturais. 
Portanto, é responsabilidade de todos os que concordam com esta linha de raciocínio a defesa destes valores e deste ponto de vista. Não podemos permitir que isto aconteça. 
É moderno, é inteligente, é contemporâneo se pensar que o principal papel da cultura e dos seus agentes é reconhecer o diferente como coletivamente igual. Não se faz surgir do nada o interesse individual por valores diferentes. É um longo processo de construção. O pensamento intelectual, a reflexão e ações consequentes podem promover mudanças sociais. 
A ópera precisa de um amplo e alargado conjunto de atividades que se interligam e convergem para a mesma finalidade. No minha visão, o Coral Paulistano é parte essencial deste longo processo de contribuição que a ópera, como forma de expressão, de desenvolvimento profissional e de interesse coletivo, pode oferecer.