quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Dilemas Contemporâneos da Cultura (48)





Em 23 de Dezembro de 2002 escrevi o artigo abaixo. Lá se vão oito anos.
Não mexi uma vírgula do texto original e, como num jogo dos sete erros, proponho que o texto seja lido, revisto e o que de fato mudou e esteja em funcionamento seja apontado como tal. 


Cultura, essa pedra no sapato.
Ao contrário do que se apregoa ser este um país dotado de imensa vocação cultural, é com reticências de bastidor que se avaliam os cenários da atividade para os próximos anos. Tanto é assim que o pouco que se sabe do futuro são idéias generalistas a menos de 10 dias para posse de novos governos. Patinha feia, órfã indesejada, prima pobre de organismos de maior orçamento, sabe-se que a Cultura tem pouco dinheiro no chamado orçamentário da União, Estados e Municípios.
Os orçamentos somente são pequenos por equívoco de posicionamento e falta de visão de conjunto da realidade da própria cultura. É fácil para um governante alegar faltas de verbas pelas urgências sociais como se fosse um instrumento dissociado da política de desenvolvimento. É comum questionar-se salário de músicos se comparados à necessidade de remédios. Para que editar livro, se precisamos de merenda? Porque dar bolsa para um artista plástico, se precisamos de uniforme? Para que desapropriar um prédio importante do patrimônio, se o assentamento na reforma agrária é mais urgente? 
Nesta linha e com desculpas inomináveis são engavetados projetos de fomento, investimentos urgentes e fundamentais para a mudança de patamar da Cultura encarada como atividade supérflua por pura ignorância. Tão triste quanto isto é a ausência de um projeto político claramente discutido.
Ainda que existam bases para discussão e prática, está distante o entendimento de que Cultura é via prioritária de desenvolvimento o que significa ser encarada como atividade de caráter estratégico para gerar empregos, ampliar receitas para o Estado, ampliar a consciência de cidadania, auxiliar a afirmação da identidade, inserir a produção cultural no mercado global e ampliar a visão de mundo da população. A Cultura gera empregos diretos (artistas, produtores, técnicos) e indiretos (transporte, alimentação, serviços, comércio, trade turístico); amplia receitas com os pagamentos de impostos relativos, com a entrada de divisas (circulação no próprio país e exportação para o exterior) gerando renda; é parâmetro de identidade e reconhecimento da participação na coletividade, no sentimento de união patriótica, na valorização dos bens individuais e coletivos.
A inserção da produção no mercado global favorece o reconhecimento das características culturais e receptivas do país (estados e municípios por extensão) para turismo de captação, ao mesmo tempo em que amplia os horizontes e possibilidades da população por via referencial.
Estas já seriam razões suficientes para repensar os volumes de recursos disponíveis para o setor. Entretanto temos avançado pouco até por conta de uma visão limitada da origem e aplicação destes mesmos recursos já que não há uma integração da Cultura no complexo de prioridades do Estado que a enxerga como uma maneira de “agradar artistas”. Afora a manutenção das atividades meio (administração) é fundamental dotar a gestão da Cultura de recursos que permitam sustentar as atividades-fim. Estas devem contemplar obrigatoriamente a ocupação dos equipamentos destinados à cultura, ao fomento de atividades nos vários segmentos (teatro, ópera, dança, música, artes plásticas, artes integradas, arte popular, humanidades, artes audiovisuais) criando-se mecanismos de aperfeiçoamento profissional e formação através de bolsas, programas de intercâmbio, política de restauro, manutenção de patrimônio histórico entre outros. 
A Cultura não pode ser tratada como um corpo estranho e isolado do conjunto de outras atividades do Governo em quaisquer dos níveis da Federação, nem dissociada da participação do Congresso e Senado na busca de soluções objetivas. Apenas para simplificar e no que parece mais óbvio, deve atuar de forma integrada, por exemplo, aos organismos de Educação e Turismo para que no mínimo aqui os benefícios visíveis estejam correlacionados. Para obter sucesso, o Estado deve realizar todos os esforços para viabilizar recursos de fontes patrocinadoras para a produção cultural tais como empresas privadas, entidades internacionais, programas de financiamento entre outros. Da mesma maneira, implementar a participação coletiva no processo. Nos programas de incentivo, por exemplo na lei federal, nos limites negociados com a Receita, poder-se-ia criar um mecanismo que permitisse à pessoa física destinar um percentual do seu imposto a pagar para determinado segmento da cultura de sua escolha. Estes valores constituiriam um fundo de fomento (ou acrescidos ao próprio FNC-Fundo Nacional de Cultura) no orçamento da Secretaria responsável pela área escolhida pelos contribuintes. Da mesma maneira, as empresas que não têm volume de imposto a pagar suficientes para patrocinar projetos, não têm vocação ou acesso para utilizar este mecanismo não poderiam também destinar parte do seu imposto para áreas de sua simpatia? Não seria este um mecanismo democrático e de formação de cidadania num segmento de importância estratégica? Não seria este um dos parâmetros para que se definam em que segmentos carentes de recursos, interesse mercadológico ou de visibilidade junto à população o Governo deveria investir? Ainda falando da lei federal, não seria mais democrático se empresas que detém seus institutos próprios fossem obrigadas a investir parte dos recursos incentivados nos programas públicos e na produção privada atuando fora de suas instalações? Não seria mais lógico deixar que a palavra patrocínio fosse usada apenas quando se tratam de recursos não incentivados, retornando ao mercado o diferencial tão importante para as empresas realmente patrocinadoras?
Mas deve ficar a Cultura apenas limitada a esta lógica? Obviamente não. Muitos produtos culturais podem ser realizados sob critérios de administração que permitam seu financiamento, retorno para investidores privados, sob incentivos para exportação e, nestes casos, deve o Governo apoiar o desenvolvimento de bancos de negócios, formação de agentes, programas apoiados por política de turismo, entre outros mecanismos. Outro aspecto importante é o fomento à criação e produção, aqui incluindo a formação de mão de obra técnica e artística. Nesta direção, a política de patrimônio e sua ocupação sustentada podem ser um alicerce importante para o surgimento de novos núcleos produtores nas artes e, nesta matéria, cabe ao Estado buscar e apoiar a busca de recursos para que as manifestações culturais inclusive étnicas possam ser abrigadas e sustentáveis. Se no âmbito da gestão dos Estados e Municípios ainda não se informatizaram bilheterias, não se criou regularidade de produção e de programação anunciada antecipadamente, não se modernizaram os conceitos de gestão, não se estabeleceram parcerias com produtores privados, não se ampliaram os programas de assinaturas, de participação coletiva em grupos de mecenato, são estes os pontos de partida urgentes.
 Em termos objetivos isto basta? Também não. A circulação de produtos culturais e acesso aos bens de raiz precisam ser democratizados e para isto devem ser utilizados todos os recursos tecnológicos disponíveis. As ações culturais devem ter desdobramentos, disponibilizadas regularmente através dos meios de comunicação; devem ser estabelecidos critérios para a circulação de teatro, ópera, dança; criar e manter orquestras em associação com entidades, associações, núcleos; privilegiadas as artes em produção nos Estados e municípios, sendo estimuladas as artes potenciais a partir de núcleos primários existentes ou da sua difusão através de exposições, reproduções, uso de tecnologia; as artes plásticas devem ser apoiadas com a ampliação e criação de pólos regionais de circulação e salas receptivas; a arte popular deve incentivada ao cooperativismo e associação a estruturas de turismo na comercialização regional e difusão externa; são urgentes os mecanismos para distribuição do cinema nacional, inclusive estimulando a criação de cineclubes (privados, cooperados ou até no âmbito dos próprios equipamentos do estado); estabelecer mecanismos para que oficinas culturais tenham atividade regular nas áreas do conhecimento e de forma a que estes núcleos de fato formem mão de obra; o pensamento deve ser difundido sob todas as formas possíveis (palestras transmitidas por satélite, edição de livros, seminários etc) em convênio com universidades, entidades sociais etc.; a preservação do patrimônio deve receber todo o estímulo do estado, sem paternalismos quando patrimônio privado, com rigor quando patrimônio do próprio estado, tendo como principal orientação a ocupação destes espaços, mantidas suas características e vocações originais ou adaptando-as a ocupações correlatas, de forma a preservar a memória geopolítica, histórica e artística; promover a circulação de bens priorizando facilidades para escolas, educadores e idosos; estabelecer política de circulação para o exterior estabelecida  em conjunto com a política de turismo.
A circulação de bens deve ser um mecanismo consciente em todas as esferas e as políticas públicas neste segmento têm que ser prioridade em todas as áreas do poder econômico, sejam associadas aos programas de exportação de produtos industriais e manufaturados, sejam aos programas de turismo, programas de tecnologia e outros.
A presença do Estado é inevitável e é na prática associativa com a produção cultural e na sinergia destas forças decorrentes que quaisquer mobilizações farão sentido para o futuro. A difusão do conhecimento deve ser encarada como rotina e o Estado deve fazer todos os esforços para que a população entenda que ele está a serviço da Cultura e não o inverso que é risco de cairmos no populismo demagógico. A partir daqui é necessário que se enxergue a Cultura e o direito ao acesso à informação cultural como necessidade elementar. A cultura, no extremo, deve ser entendida como indústria limpa que depende do potencial criativo do homem e para tanto deve ser desenvolvida e incentivada. Para isto precisa ser tratada com planejamento, decisão, objetivos e metas. Caso contrário, será por mais tempo uma pedra indesejada no sapato.