sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Dilemas Contemporâneos da Cultura (89)

by Aubrey Beardsley

É incomum diretores cênicos comentarem sobre o trabalho de outros diretores. Este dilema é um tabu divertido, compreensível pela simples razão de que não é dos diretores o exercício da crítica, muito embora não se subtraiam dos críticos a possibilidade de exercerem atividades correlacionadas à sua área de ação. Um dilema ético e moral, digamos. Apesar disto, seria aceitável que a autoridade ética e moral de quem sempre evitou ferir esses princípios conferisse um habeas corpus preventivo para que uma vezinha só pelo menos o exercício crítico pudesse ser feito. No meu caso, não daria certo. Não confio nesta história de autoridade, menos ainda se ética e moral. Mesmo assim, em se tratando de Salomé, é incontrolável deixar de exprimir publicamente minha opinião (pronto, mais uma fadinha louca se suicidou enfiando uma caneta bic no ouvido, não é, Dani?). 
Para o bem das fadinhas loucas, será uma impressão e não um palpite.
Sempre gostei - muito - de Salomé, a peça de Oscar Wilde. A música de Strauss na ópera homônima é arrebatadora (isto significa que gosto, tá?). Em pelo menos três oportunidades, inclui a leitura de trechos de Salomé em espetáculos que escrevi e dirigi. A densidade de conteúdo da personagem extrapola a leitura rasa de ser uma menina mimada, cópia espelhada da mãe, a redentora feminina da família, o ícone transverso da religiosidade explicita de Jochanaan ou coisas do tipo. Há uma amalgama inseparável resultante da presença de Herodes, Herodias, Jochanaan e Salomé. A natureza destas novas figuras criadas é cativante. Mas, esta pode ser uma longa conversa e por ora deixemos assim.
Enquanto conversava com o André Heller-Lopes após a apresentação da Salomé que ele dirigiu no Municipal do Rio de Janeiro, me ocorreu que deve existir um Complexo de Salomé. Uma manifestação psíquica em que alguém portador da síndrome, não conseguindo ser “amado” – mesmo que nada tenha feito para isto ou não tenha qualquer atributo que o leve a ser amado – corta a cabeça de um, de dois, de tantos quantos forem visíveis à sua frente. Isto feito, o portador abraça a carcaça imaginária de suas vítimas e, solitário, tem prazeres indescritíveis em meio ao sangue também imaginário que corrói seu corpo pouco a pouco disforme, transformando seus miolos em uma gosma inoperante que só ele não percebe.
Uau!

Não conversei com o André sobre isto. Aliás, fadinhas suicidas sempre que alguém resolve dar pitaco sobre o trabalho alheio, e banheiras de sangue de cabeças decapitadas são assuntos para longas e divertidas conversas. No encontro do Rio, só falamos sobre a deliciosa Salomé que ele dirigiu. Como lhe disse, a solução que ele achou para os judeus só é resultado de quem é culto e tem a maturidade do métier. Gostei. Para dirigir Salomé precisa ter as duas coisas. Sem isto, a morte de Nahaboth é insossa. Já vi esconderem Herodias durante a dança dos sete véus, como se a mãe não suportasse ver a cena. André a coloca do lado esquerdo do palco (o nosso esquerdo teatral) exatamente para que se remoa nervosamente enquanto corre a coreografia de Eric Frederic (bravo!). Do mesmo modo que se percebe o diretor, nota-se o bom coreógrafo onde gestos desnecessários inexistem. Uma montagem simples, refinada, inteligente.