quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Nota de Rodapé (20)

Batuta

Um amigo comentou comigo não ter gostado do Dilemas Contemporâneos da Cultura (85) porque citei o maestro Isaac Karabstchevsky, hoje diretor artístico do Theatro Municipal do Rio de Janeiro cuja programação, ou falta dela - é alvo de críticas. Como ele não quis se expor com receio de retaliação ou coisa parecida, respeito, mas aproveito o mote para uma reflexão.
Disse a ele, da mesma maneira direta, que não faço citações de pessoas com objetivos de melhorar ou denigrir imagens. Acho que todos somos maduros o suficiente para termos sustentação naquilo que já fizemos e parto do principio que pessoas deveriam aprender com seus erros. 
Quanto ao maestro Isaac, tenho por ele um respeito enorme pelo que construiu durante a sua longa carreira e o texto apenas teve como objetivo demonstrar que o mais bem sucedido profissional brasileiro nesta área começou sua projeção pessoal a partir do Madrigal Renascentista: essencialmente, um grupo com características que o aproximam do Coro Paulistano, alvo de uma fusão, para mim indesejada e inadequada, com o Coral Lírico na cidade de São Paulo. Com isto, ofereci mais um argumento sobre a importância do desenvolvimento também de regentes que passam por grupos como estes. 

Aliás, esta notinha, não passa de um lembrete de rodapé sobre esta trágica possibilidade cogitada de fusão.


sábado, 5 de outubro de 2013

Dilemas Contemporâneos da Cultura (85)

A rosa amarela tem vários significados. 
Aqui é também memória e homenagem divertida à história.


Em 1948, três anos após o final da segunda guerra, T.S. Eliot publicou um apelo à ordem em meio a uma Europa ferida e despedaçada que denominou “Notas para a definição da cultura”. Assim escrito como introdução, a Companhia das Letras apresenta “No Castelo de Barba Azul”, de George Steiner, um livrinho importante que integra a trilogia essencial para a compreensão das redefinições de cultura no nosso Século. A terceira publicação é “A civilização do espetáculo - uma radiografia do nosso tempo e nossa cultura”, de Mário Vargas Llosa.
Para manter a coerência já que roubei da orelha do Barba Azul (segue)     o resumo de Eliot, é da Objetiva que copio o tema central do livro de Vargas Llosa. O Prêmio Nobel de Literatura em 2010, constrói seu livro falando da banalização das artes e da literatura, o triunfo do jornalismo sensacionalista e a frivolidade da política como características da sociedade contemporânea - a ideia temerária de converter em bem supremo a natural propensão humana para o divertimento. 
Em "A civilização do espetáculo", o escritor diz que “no passado a cultura era uma espécie de consciência que impedia que virássemos as costas para a realidade. Hoje, lamenta Vargas Llosa, a cultura atua como mero mecanismo de distração e entretenimento”. Para ele, “a ideia ingênua de que, através da educação, se pode transmitir cultura à totalidade da sociedade, está destruindo a ‘alta cultura’, pois a única maneira de conseguirmos essa democratização universal da cultura é empobrecendo-a, tornando-a cada dia mais superficial”. Uma longa e excitante discussão à vista para breve.
Mas, é "No Castelo do Barba Azul", de Steiner, escrito vinte e três anos depois de Eliot e quarenta e três antes de Llosa, que busquei o tema para esta reflexão.
Logo na primeira página, Steiner afirma que “cada nova era histórica se espelha na imagem e na mitologia ativa de seu passado ou de um passado emprestado de outras culturas. Ela põe em prova, em contraste com este passado, seu sentido de identidade, de regresso ou de novas realizações. Os ecos pelos quais uma sociedade procura determinar o alcance, a lógica e a autoridade de sua própria voz vêm da retaguarda. Evidentemente, os mecanismos em ação são complexos e enraizados em necessidades difusas, mas vitais, de continuidade. Uma sociedade requer antecedentes”.
Uma sociedade requer antecedentes. 
Vamos ler de novo: uma sociedade requer antecedentes.
Por um acaso, encontrei um disco– um LP , com uma gravação sob a regência do jovem Maestro Isaac Karabtchevsky, à frente do grupo Madrigal Renascentista, de Belo Horizonte, onde começou sua carreira. 
Aliás, uma excepcional carreira, que o colocou à frente de todos os músicos brasileiros do seu tempo. 
Em 1999, regeu Boris Gounov, com Samuel Ramey, na Ópera de Washington. Longe de mim imaginar esta como sendo sua consagração como regente de ópera.
Claro que não. O maestro regeu e rege todas as grandes orquestras brasileiras. De 1988 a 1994 foi titular da Orquestra Tonkünstler de Viena. Regeu concertos e óperas na Volksoper, na Staatsoper, no Musikverein, as melhores salas de Viena. 
Foi aplaudido em Amsterdã, no Concertgebouw, no Royal Festival Hall, em Londres,  no Carnegie Hall, de Nova York, no TeatroReal – o El Real de Madrid, no Teatro Colón, o mítico teatro argentino. Na Itália, Karabtchevsky foi diretor artístico do La Fenice, em Veneza. E lá trabalhou também durante todo o período de reconstrução do teatro após o incêndio que o destruiu. Lembro disto, porque já havia escrito sobre o maestro. Falei dos seus cabelos ao vento na Quinta da Boa Vista no Rio de Janeiro, nos memoráveis concertos matinais dos domingos. Uma imagem de vigor na regência que poucas vezes vi em outros maestros. Nas condições improvisadas por que passava o La Fenice, nos encontramos durante uma Carmen. Ali percebi que não eram apenas cabelos ao vento, mas também havia brilho nos olhos. Um detalhe que o maestro nunca perdeu. As circunstâncias nunca nos permitiram trabalhar juntos, mas conversamos várias vezes em Veneza, no Rio, em São Paulo e em Porto Alegre onde também regeu a OSPA. Falamos sempre de música, de ópera, deste prazer que nos une, embora em caminhos diferentes.
As principais interpretações de Isaac Karabtchevsky no La Fenice, estão gravadas. Algumas destas versões são memoráveis.
Tudo isto me veio rapidamente à memória ao ver o LP do Madrigal Renascentista. No repertório, Exultate Deo (de Alessandro Scarlatti),  Ay luna que reluces (de Juan el Encina), Contraponto bestiale  alla mente (de Adriano Banchieri), Rosa Amarela* (de Heitor Villa-Lobos) e Dona Janaína (de Francisco Mignone e Manuel Bandeira em arranjo do próprio Karabtchevsky) entre outras peças igualmente interessantes.
Em 27 de Dezembro e ainda na ativa, em vigor pleno, Isaac Karabtchevsky completará 79 anos. 
É impossível dissociar da sua vida profissional o trabalho – o aprendizado – como diretor e regente do Madrigal Renascentista. Este conjunto especializado num tipo de repertório especifico,  provavelmente influenciou o futuro como o maestro viria a conduzir as principais orquestras de ópera europeias.
Os madrigais são essencialmente os antecessores da ópera, trabalhando as possibilidades dramáticas do texto cantado. A versatilidade e exercícios de estilo para seus integrantes, são uma característica importante dos Coros que trabalham os madrigais, a música barroca, canções, um imenso repertório que vai de Mozart a Fauré, de Handel a Stravinsky e muito além. Não raro, seus cantores se tornam solistas de ópera ou mesmo migram para coros líricos. Essencialmente, sua função está no sensível e delicado trabalho vocal buscando interpretar a perfeita tradução do texto em música como criaram seus compositores. Por estas razões, já são mundialmente lendários grupos como o coro Monteverdi e o coro Accentus
No Brasil, em São Paulo, o Coral Paulistano foi criado com idêntica vocação,  por Mário de Andrade, na esteira dos eventos decorrentes da Semana de Arte Moderna de 1922, com a missão de cantar música brasileira, levando-a ao Theatro Municipal de São Paulo. Mais do que isto, o Coral Paulistano viria a se tornar interprete de um eclético repertório que abre para as plateias brasileiras referências essenciais para a consciência crítica, resultado típico do conhecimento e da cultura.
Há um movimento no Theatro Municipal de São Paulo para acabar com o Coral Paulistano, aparentemente integrando seus cantores ao Coro Lírico do mesmo teatro.
Isto não pode acontecer.
É papel do Coral Paulistano continuar trabalhando repertório próprio no Theatro Municipal e é uma expectativa absolutamente coerente com o perfil de São Paulo que sua atividade seja estendida às comunidades, nos teatros de bairro, nos CEUs, e em outros espaços públicos. 
Sua atuação é facilitadora da compreensão da própria ópera, missão do Theatro Municipal onde o Coral Paulistano está abrigado.
A permanência do Coral Paulistano e ampliação do seu relevo é condição estratégica para a própria atividade fim do Theatro Municipal de São Paulo e foge da minha compreensão como se pode cogitar a sua extinção. 
Citando Vargas Llosa, claro que o “desejo de cultura” e a capacidade de escolha é fórum individual do cidadão, mas só uma sociedade muito doente permite que quem está no comando, qualquer que seja o nível, despreze os seus reais valores culturais. 
Portanto, é responsabilidade de todos os que concordam com esta linha de raciocínio a defesa destes valores e deste ponto de vista. Não podemos permitir que isto aconteça. 
É moderno, é inteligente, é contemporâneo se pensar que o principal papel da cultura e dos seus agentes é reconhecer o diferente como coletivamente igual. Não se faz surgir do nada o interesse individual por valores diferentes. É um longo processo de construção. O pensamento intelectual, a reflexão e ações consequentes podem promover mudanças sociais. 
A ópera precisa de um amplo e alargado conjunto de atividades que se interligam e convergem para a mesma finalidade. No minha visão, o Coral Paulistano é parte essencial deste longo processo de contribuição que a ópera, como forma de expressão, de desenvolvimento profissional e de interesse coletivo, pode oferecer.


domingo, 29 de setembro de 2013

Dilemas Contemporâneos da Cultura (84)

Acrílica sobre tela - Walter Introini

Ao ser indicado pelo deputado Gabriel Chalita ao prefeito eleito Fernando Haddad, John Neschling assumiu a direção artística do Theatro Municipal de São Paulo (TMSP) sob a aura de retorno à Cidade que o aplaudiu à frente da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo.
Após sair da OSESP, Neschling reapareceu com sua Companhia de Ópera que não vingou após alguns meses de trabalho.
Nome natural para estar à frente de Orquestras Brasileiras, após longo retiro sabático, digamos assim, o maestro retornou a São Paulo, visto com certo pé atrás por algumas pessoas, muito mais em função do seu estilo arrasa-quarteirão do que por sua competência(segue).  O tom ameno das primeiras entrevistas e conversas mantinha nos interlocutores certo receio de que seu temperamento tumultuasse a cena lírica da Cidade. A bolsa de apostas dos bastidores oscilava à época entre 6 e 8 meses para que a brisa fresca se transformasse em tufão.
Em meio a uma mudança administrativa iniciada na gestão anterior, sob regime de uma Fundação de direito público (acho um erro este caminho inicial e nele está a diferença fundamental com relação à OSESP, por exemplo), o Theatro Municipal de São Paulo inevitavelmente, qualquer que fosse o gestor, passaria por um período de transição complexo e difícil. Fazendo uso de uma analogia vulgar, esta fase seria a mesma de trocar as turbinas do avião durante um longo voo para o Japão.
Este preambulo serve para dar uma face das tensões que permeiam o TMSP neste momento.
Infelizmente, o Theatro está às voltas com problemas que extrapolam as questões de funcionamento administrativo, virando palco de polarizações evidenciadas por afirmações negativas quando à qualidade dos profissionais brasileiros, acusações de supostos favorecimentos comerciais, dúvidas de sabotagem nos equipamentos, reclamações internas de diversas origens, preconceitos contra a própria cidade, excessos nas redes sociais (da acusação diária de desvios de conduta do maestro ao puxa-saquismo extremado, passando por respostas iradas, contestação permanente de ambos os “lados” etc.), fusão dos Corais Lírico e Paulistano, e matérias em vários veículos como a Folha de São Paulo e a Isto é e outros, gerando polêmica, rebatimentos e novas contestações nas redes sociais.
Nós profissionais da ópera, precisamos trabalhar e é natural a expectativa de fazê-lo no Theatro Municipal onde regularmente sempre houve espaço para todos. Tecnicamente falando, não há razão para que artistas de várias áreas estejam fora da programação do TMSP. Artistas que, antes desta gestão, criaram e produziram bons espetáculos durante vários anos e na vocação original do TMSP de apresentar  ópera.
Por outro lado, a construção das responsabilidades do Municipal são mais complexas. Sabemos que temos severas limitações no ensino em todas as áreas. Faltam mais professores de canto, o ensino das técnicas de interpretação é insipiente, não há escola regular que atenda a demanda de técnicos, faltam programas de profissionalização. Não podemos, entretanto,  anular a capacidade de nossos artistas, bastando para isto observar que o teatro, o cinema e a televisão se desenvolvem. E se isto acontece é porque existem mecanismos criados dentro do próprio Estado para que isto aconteça.
Já a ópera depende dos espaços de grande porte, de orquestras e coros para ser realizada de maneira plena. Mesmo com outras soluções isoladas de sucesso em outros formatos, ainda não há meios de se criar uma base sólida abrangente para o gênero.
Isto não acontecerá em São Paulo se o Municipal não priorizar a presença de artistas e técnicos nacionais trabalhando de fato. Este raciocínio ou “prestação de contas” não pode ser numérico, nem apenas fundamentado em respostas semânticas. Insisto: é a direção do Theatro Municipal quem deve se posicionar e criar mecanismos para que artistas nacionais possam atuar na sua programação e não estou falando apenas nos corais e orquestras.
Estou certo de que todos queremos que o Theatro volte à normalidade, trabalhando com qualidade, criando oportunidades para os profissionais brasileiros, trazendo artistas estrangeiros, inclusive diretores, regentes, cenógrafos, entre outros, que possam acrescentar experiência à atividade no Brasil.
Mais ainda, queremos que o Theatro respeite as instituições, a legislação vigente em todos os seus aspectos, que crie mecanismos para promover o acesso da população ao gênero e, reconhecida sua limitação física (pouco mais de 1500 lugares), que outras formas de apresentação sejam desenvolvidas, principalmente para e nas periferias. Seria um ótimo desafio para o prefeito Haddad construir um novo teatro de ópera na zona leste, por exemplo, obrigando o próximo governante municipal a ocupa-lo de maneira adequada.
Queremos também que o TMSP fomente a produção nacional, definindo novos padrões artísticos que atraiam público de todo o país e do exterior para seus espaços, que consiga difundir a ópera favorecendo o pensamento intelectual em torno do tema e uma série de outras providencias conhecidas por quem é da atividade. O TMSP tem a obrigação de construir este caminho e isto não se contesta.
Creio que de um modo geral ninguém é, por princípio, contra qualquer gestão nova no TMSP e todos torcem para que o resultado seja bem feito. No entanto, o fazer bem feito tem um componente que implica em ponderação, aceitação e compreensão das divergências, negociação de forma equilibrada, respeito à história dos equipamentos e das pessoas envolvidas, entre outros aspectos óbvios.
Pessoalmente, sou radicalmente contra a extinção do Coral Paulistano ou sua fusão com o Coral Lírico como foi anunciado e se tornou o foco da crise atual do Theatro. Basta dizer que o Paulistano é um ativo artístico da Cidade de extrema importância e relevância. Suas características precisam ser preservadas e seu trabalho e seu conceito valorizados. Sua extinção é uma perda irreparável para os profissionais que deram corpo ao conjunto e para a Cidade. Qualquer ação desta natureza precisa ser repudiada com veemência.
De resto, acho que já passou tempo demais, já se falou demais e é chegada a hora de dizer chega. O Theatro precisa entrar nos eixos, mesmo que para isto tenha que recuar em algumas posições. Não dá para esticar a corda o tempo todo e, quando ela se rompe, não adianta imaginar que alguém a cortou. Outra analogia banal, mas simples e direta como devem ser as coisas no ambiente criativo.
A continuar este estado não haverá meios de se conseguir bons resultados artísticos e toda a cadeia envolvida, dos dirigentes do teatro ao Prefeito, todos serão responsáveis. 

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Carlos Gomes no Mapa do Brasil (45)



Para quem não conhece, Mortadelo y Filémon são uma dupla infernal. No Brasil, a criação do espanhol Francisco Ibáñes recebeu o nome de Mortadelo e Salaminho. Comics de absoluto non sense e a imagem deste post ilustra bem isto (observe os cadarços soltos, as cinco (?) mãos de Mortadelo e as de Salaminho, a lagosta no bolso da calça)
A dupla vive às turras com uma série de criminosos. Ah, sim... Eles são detetives e têm milhões de soluções malucas para prender os bandidos, acabar com as quadrilhas perigosíssimas que destruirão o planeta sem a intervenção  quase sempre idiota de Mortadelo e o apoio discreto de Salaminho.
Lembrei dos dois porque pesquisava o significado do nome Filemon.
O nome de certo edifício chamou minha atenção: Condomínio Residencial Filemon  (leia mais). Não por acaso – não deve ser isto – li matéria sobre o livro que o Gustavo Piqueira está lançando sobre fotos curiosas da cidade de São Paulo enomes dos edifícios
Pois é. Por que Filemon?  Homenagem ao Mortadelo e Salaminho?
Ou uma referência à eleição do congressista americano Filemon Vela?
Entre todas as referências, acho que o melhor foi ter conhecido um pouco da obra do genial fotógrafo Filemon Lopez, nascido em São Luiz Potosi, no México. Vale a pena conhecer seu trabalho.
Como tudo na vida, uma coisa puxa outra e outra e outra.
Filemon  (File –arquivo – e Mon – monitor) é também o nome de um processador de monitor para ambiente Windows, hoje em desuso.
Muito bem.  Nesta grande mistura, a Rua São Luiz (referência à cidade Natal de Filemon Lopez) corta a rua Database (novamente a informática e não me perguntem por que uma rua com este nome) que termina na Av Duque de Caxias, a uma quadra da Rua Maestro Carlos Gomes, na cidade de Lins, do Estado de São Paulo, onde fica o  Condominio Residencial Filemon.

terça-feira, 27 de novembro de 2012

Bob Wilson em movimento.


Montagem sobre cena em p&b do Anel do Nibelungo de Bob Wilson e ingresso
by cepê

Watermill Center é uma instituição americana. Como também é Bob (Robert) Wilson.
Aos 71 anos, Bob Wilson construiu uma marca de largo espectro, trabalhando com todas as possibilidades que a arte oferece. Assim, enquadrá-lo como diretor, coreógrafo, performer, escultor, pintor, designer de som e luz, arquiteto, vídeo artista ou designativos semelhantes não deixa de ser uma forma involuntária de redução. Bob é um artista sem limites, cujos limites são aqueles impostos por ele mesmo.
Radicaliza quando extrai a emoção das palavras cantadas, exclui os contatos visuais dos diálogos e traduz o movimento em gestos contidos ao extremo e sem necessariamente um significado claro para a plateia (leia mais). Tudo passa a ser forma, com linhas verticais e horizontais que se movem, sem economia de espaços, sem objetos, com luz e contraluz todo o tempo. Desenhos que imprimem uma logotipia própria, um carimbo de si próprio de encantamento inevitável.
Sua obra é magnífica. Não há quem não veja com prazer a profusão de formas visuais que cria com a luz e a insistência com que transforma todas as cenas em fotogramas diferentes uns dos outros, com precisão cirúrgica a subtrair o máximo da sua imaginação, numa interpretação de gestos mínimos sem qualquer similaridade concreta com os teatros nô,kyogen ou kabuki japoneses. Ou seja, independente das suas eventuais referências, a obra de Bob Wilson é única, expressão de sua maneira de ver os textos que interpreta e de caráter universal já que entrega o espetáculo acabado com uma assinatura própria.
Uma constatação disto tudo, esteve presente na recente apresentação da sua versão de Macbeth, a ópera de Giuseppe Verdi, baseada na peça homônima de William Shakespeare. Anunciado como Macbeth de Bob Wilson, o espetáculo entra na galeria onde estão a Madame Butterfly de Bob Wilson, o Anel do Nibelungo de Bob Wilson e mais de 60 outros títulos de Bob Wilson.
Mesmo que se fale da “fórmula Bob Wilson” de fazer teatro e ópera, mesmo que se critique sua adequação ao establishment que o premia com fartos recursos em todo o mundo, é fato que sua obra é objeto de louvação publica por plateias e artistas de várias formas de expressão.
Abrindo mão do distanciamento (inclusive épico), da ilusão dramática, da relação direta entre personagens previamente concebidos, seu trabalho é classificável de pós-dramática (ver Teatro Pós-Dramático, de Hans-Thies Lehmann) e Bob Wilson ratifica isto ao não perseguir uma adesão integral do expectador, mas um exercício da sua percepção aos estímulos provocados por sua luz cenográfica. Não há mesa em Macbeth, mas dois fios de luz paralelos criando um tampo imaginário no ar. Não há parede no quarto de Lady Macbeth, mas um tecido sugerido por lantejoulas douradas gigantes presas a fios, da mesma forma que seu céu estrelado é feito por lantejoulas mínimas também fixas da mesma maneira e submetidas a movimentos aleatórios inevitáveis refletem – faíscam – uma delicada luz pontual sob um fundo azul escuro. Não existem objetos. Ou melhor, poderiam não existir objetos. Da mesma maneira que não há carta, não seria necessária a faca usada por Macbeth que Bob Wilson mantém, ou mesmo as adagas dos assassinos. Desnecessária a cadeira com o tecido branco que desce lentamente presa a um fio aparente para simbolizar a aparição de Banquo no trono de Macbeth? Wilson mantém a cadeira. Bastaria o tecido, uma fumaça, um vento. Dirigir também é optar. É provável que em montagens futuras a cadeira suma.
Assistir Bob Wilson tornou-se uma obrigação intelectual e talvez por isto, certo dejá-vu é também inevitável.
Ao contrário do dejá-entendu desejado pelo público de ópera, os espetáculos de Bob Wilson tendem ao blasé do contato com a alta tecnologia técnica.
Torna-se um contraponto interessante ver a maioria das produções de ópera nacionais em que se conta em pouco mais da metade dos dedos da mão esquerda, os diretores que não abusam do excesso de elementos simbólicos atribuindo significados para além do texto, misturando alegorias futuristas, religiosas, sociais, pseudopolíticas, com incontrolável profusão de ideias, sem qualquer significado no mesmo espetáculo, ou a opção pela linearidade explicita, muitas vezes cópias mal transcritas de dvd’s importados.
O teatro de Bob Wilson trabalha o movimento do ator e não a ausência dele como podem apressadamente supor alguns. É sua opção usar o movimento daquela forma.
Nada mais contemporâneo do que propor que o movimento determine a interpretação da música – do texto – assumindo ser a razão do trabalho do ator (que age). Mesmo que esta ação seja de aparente ausência, ou até de distanciamento da partitura proposta. Isto não significa ausência de meios, de cenários, de figurinos, mas de equilíbrio e uma pesquisa que tanto pode evoluir para a extrema contenção dos movimentos ou a sua naturalidade próxima do real imaginado (aí sim, a criação).
Há quem não goste e odeie Bob Wilson pela ausência do apego aos diálogos.
Sendo a ópera um espetáculo de teatro musical, seu compositor originalmente definiu os tempos da ação. É natural e esperado por certa parcela de público que, em Macbeth, por exemplo, o diálogo dos três grupos de Bruxas seja exposto de maneira criativa pelos diretores, ou, também como exemplo, que os dois grupos Assassinos conversem entre si, que se estabeleça o diálogo entre os homens de Malcolm e Macduff, preservando a estereografia de Verdi. Ou ainda que a personalidade forte de Banquo como opositor de Macbeth seja valorizada por suas reações antevistas pelo compositor. Ou seja, sob a alegação de que seu trabalho não traduz a obra original e com isto não contribui para a compreensão do texto, odeia-se Bob Wilson por excluir da sua interpretação detalhes explícitos pelo compositor na partitura. Rejeita-se Bob Wilson porque seu trabalho aparentemente engessa o cantor e o põe na arena obrigando-o a cantar pleno, movendo-se como um fantoche ou, por ironia, como boneco de playmobil. Isto não impede, entretanto, que se reconheça o valoroso baixo Carlo Cigni, interprete de Banquo.
Aos comentários de que a música é boa por si, é bom lembrar que ópera é teatro musical ao vivo executada dentro de convenções formais e Bob Wilson faz teatro: o teatro dele.
Ama-se e odeia-se Bob Wilson. Escolha um lado e divirta-se.

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

As periferias e os trabalhadores da cultura: uma visão na cidade de São Paulo.

Texto publicado originalmente no site Cultura&Mercado em 14 de Novembro de 2012.


Prefeitos em início de gestão têm um olho no caixa e outro na política. Garantida a governabilidade, as demais secretarias são apresentadas em regime de conta-gotas diárias.

Nesta etapa, todos aqueles que dependem direta ou indiretamente das decisões que definirão rumos e possibilidades de trabalho na Cultura para os próximos quatro anos, alimentam-se de expectativas. Esta é uma constatação importante.

Para a população de um modo geral, a interação com as formas de expressão acontece numa etapa em que os programas já estão consolidados, em andamento ou não (leia mais). Para os trabalhadores da Cultura, as decisões acerca dos novos modelos de gestão são cruciais para definir questões elementares tais como a própria sobrevivência. Artistas, técnicos e produtores dependem fundamentalmente de recursos públicos, pois, como é sabido, bilheterias não garantem a remuneração a todos os que compõem a cadeia produtiva dos espetáculos. Outras formas de expressão que dependem da difusão de sua obra e reconhecimento para que seja comercializada, em outras escalas também estão associados às mostras, editais e atividades de fomento. Assim, resumidamente apresentada, são duas as pontas dependentes das políticas a serem adotadas pelos novos Governos. De um lado a comunidade a quem os projetos são dirigidos e de outro aqueles que criam e produzem Cultura. Não estou levando em consideração a própria consolidação dos projetos políticos relacionados ao sucesso efetivo das administrações.

É, portanto, significativa a expectativa criada pela futura gestão da Cidade de São Paulo em torno de novos Centros Culturais a serem construídos em regiões da periferia.

Não tenho dúvidas quanto à necessidade da criação de novos espaços culturais e qualquer medida nesta área é pouco se considerado o tamanho da cidade e as enormes carências. A tendência de se fazer espaços plurais também me parece imprescindível pelas medidas inclusivas implícitas.

Por razões naturais, qualquer iniciativa desta natureza possui prazos de viabilidade, ou seja, a implantação dos centros exige um longo caminho entre definição de espaços, projetos construtivos, aprovações gerais e licenças, inclusão no orçamento do município, eventuais desapropriações, projeto executivo e outras providências. É de se esperar que estes espaços possuam funcionalidades objetivamente definidas e sejam concluídos plenamente equipados para abrigar as mais variadas expressões artísticas, musicais e cênicas.

Esta e outras decisões não podem, entretanto, ser impeditivas da continuidade dos processos culturais em andamento, nem limitadoras do aperfeiçoamento e acréscimos que se espera a cada novo governo.

Na esfera de organismos como o Theatro Municipal, por exemplo, serão necessárias providências emergênciais relativas aos mecanismos de funcionamento do próprio teatro em si. Recentemente abrigado numa fundação de direito público, é urgente a regularização do seu corpo funcional, a definição do seu calendário para os próximos anos, a multiplicação de suas atividades e a ampliação do seu papel como instrumento gerador de conhecimento. No mínimo, garantir o fluxo natural de sua atividade fim.


A cidade possui dinâmicas que afetam não apenas o seus cidadãos, mas também aqueles que a visitam. Segundo a SP Turis, a cidade de São Paulo recebeu 11,7 milhões de turistas em 2010. Sem considerarmos os incomes dos eventos esportivos internacionais próximos, mantida a mesma taxa de crescimento com relação a 2009 (3,9%), a cidade receberá pelo menos 13 milhões em 2013, numa relação de aproximadamente 80% de turistas nacionais.  É pouco. Mal comparando, a cidade de New York possui na sua região metropolitana pouco menos dos 19 milhões de habitantes da Grande São Paulo (36 municípios circunvizinhos) e recebe mais de 50 milhões de turistas por ano. Não deixa de ser uma referência mundial a sua concentração de teatros, museus, casas de ópera, escolas de formação. Isto não significa que o modelo americano nos sirva integralmente, mas é significativa a receita obtida da perfeita combinação entre turismo de negócios, de compras e cultural.

É inconcebível imaginar a cidade sem ações culturais importantes e estruturadas na sua região central. Seria um erro tão grave quanto supor a subversão das naturais ocupações dos espaços existentes, ou ainda não se privilegiar atividades culturais nos raios extremos da cidade. Pelo contrário, equilibrar estas necessidades deve ser a tônica do plano de ação de qualquer gestão municipal. Preferencialmente se forem axiais os programas que aperfeiçoem e formem agentes, difundam a cultura em todos os níveis, fomentem a produção cultural nas vertentes constituídas, espontâneas ou acadêmicas e segundo suas características. Tudo isto, livrando a cultura das amarras dos modelos atuais de leis de incentivo, aperfeiçoando os mecanismos de fomento.

Como o processo é complexo entendo ser fundamental investir na produção, qualificando resultados. Isto é estratégico, pois é daí que se criará a dinâmica interna tão desejada quando a cidade assume os seus bens culturais, extraindo o que há de melhor realizado nos vários segmentos e promovendo sua interação com as inúmeras plateias, independente de onde estejam no mapa da cidade. Lembrando que mesmo sem um estudo demonstrativo das intersecções de público entre atividades culturais distintas, é de se supor que cabe ao indivíduo a escolha das expressões que lhe interessam em particular. Propor um cardápio múltiplo é estabelecer um princípio elementar de franquia de direitos. Ao mesmo tempo, é inconcebível que persista um modelo perverso em que empresas privadas não invistam verbas próprias em projetos culturais específicos. Este diálogo precisa ser ampliado com todas as áreas de marketing e que sejam apontados os valores agregados, pelo menos aos espaços exemplares como, por exemplo o próprio Theatro Municipal. Como contrapartida a estes investimentos privados, cabe ao município oferecer a garantia de excelência, solidez de objetivos e capacidade de realização.

Tarefa difícil, mas, mais uma vez, temos a oportunidade de produzir um modelo aperfeiçoado para a cidade de São Paulo, estimulando a oferta e o seu aproveitamento por todos os que tiverem interesse, incentivando os mais jovens e dando-lhes a oportunidade de acesso em horários alternativos criados quando as ocupações estiverem plenas. Hoje já é comum vermos grupos de várias áreas da cidade assistindo espetáculos de dança, de ópera, de teatro, visitando exposições etc. As condições de acessibilidade melhoraram muito e as experiências nesta direção também assinalam com o quanto podemos tornar mais democratica esta cidade. São necessárias mais ações urgentes junto às comunidades, associações e entidades de forma a identificar potenciais de demanda e condições de atendimento.

Ampliando parcerias e, com isto, as fontes de recursos driblando as dificuldades de investimento, é perfeitamente possível multiplicar significativamente a oferta de bens culturais, sua circulação inter-regional na cidade, identificar e desenvolver novos atores no processo, dando mais um salto qualitativo nas relações da Cidade com seus moradores.


(*) Gal Oppido é um dos mais geniais fotógrafos brasileiros. Tive a satisfação de integrar a equipe liderada por Rosana Caramaschi que editou o livro São Paulo 2000, um documento importantíssimo, totalmente dedicado ao ensaio de Gal sobre a cidade de São Paulo na virada do milênio. Este livro pode ser encontrado nas principais bibliotecas brasileiras e, com sorte, alguns exemplares em sebos do Brasil e do exterior.

terça-feira, 13 de novembro de 2012

Carlos Gomes no Mapa do Brasil (44)


Cachaça(*)
Pium é um mosquitinho chato e, quando pica, deixa uma coceira danada.
Não fosse sério, o texto de Henri Saint-Hilaire, descrevendo trecho de sua viagem no livro Viagem às nascentes do rio S. Francisco e pela província de Goiás, provocaria risadas: “Chegado a Formiga fui apresentar ao comandante da povoação a carta que o capitão-mor de Tamanduá me entregara para ele, e na qual lhe dava ordem para e arranjar um pedestre para me escoltar até Pium-í.”
Acho livros de viagens fascinantes.
A história do achamento das terras onde se instalaria o Brasil, não teria o sabor que possuí não fossem os relatos de Pero Vaz de Caminha (saiba mais). Imaginem os vários outros que certamente se encontram depositados na Torre do Tombo em Portugal e sequer lidos ainda, autorais de viajantes dos navios da frota de Cabral.
Aliás, seria bem interessante conhecer a descrição do dia a dia do navio do inglês Sir Richard Hawkins  feita por um escriba inglês e outro espanhol, se lhes fosse permitido estar a bordo ao mesmo tempo. O primeiro o veria como um herói e o segundo como um pirata. Interessante, não? Para ambos, era o capitão de um navio que circulou nas costas brasileiras levando um alambique utilizado para destilar a água do mar. 
Um alambique muito semelhante aos encontrados na Casa do Alambiqueiro, na rua Coronel José Justino Nunes que atravessa a Rua Carlos Gomes, na cidade de Formiga, no Estado de Minas Gerais. 

(*) Cachaça é uma bebida tipicamente brasileira e fruto da destilação da cana de açucar em alambique. Saiba mais no blog Alambique Artesanal, da cidade de São Pedro de Alcântara, em Santa Catarina, só para embolar um pouco mais a história. Em São Pedro de Alcântara não existe a Rua Carlos Gomes.