sexta-feira, 14 de agosto de 2015

Dilemas Contemporâneos da Cultura (96)

Tarcísio Meira em foto de Gal Oppido
Nos "Dilemas...(95)" encerrei sugerindo no texto as várias formas de provocação. De origem latina, a provocação se transforma conforme sua natureza: se ato, palavra ou efeito. Pode ser uma atitude desrespeitosa e, por decorrência, vista como insulto ou ofensa. Ainda no âmbito das atitudes, pode parecer petulância, atrevimento, se usada como forma de irreverência. Pode ser uma simples tentativa de chamar a atenção, de provocar uma reação de rejeição ou afeto e todos os antagonismos relativos, inclusive aqueles de natureza sexual. Colocada em contextos específicos, provocar também pode sugerir um chamamento à briga, um desafio. 
Natureza complexa a desta palavrinha, não é? Coisa para os linguistas ampliarem um pouco mais. Eu cá limito-me a estas considerações - reflexões, melhor dizendo - sem tirar qualquer proveito dela que não seja evitar o uso desta atitude sugerida, pois corre-se o risco de se errar feio se não nos ativermos naquele simples objetivo de levar alguém a perceber alguma coisa que valha a pena ser vista. 
Considerando a gama de possibilidades que a palavra - o verbo - apresenta, melhor é, parece-me, considerar a hipótese de provocar como algo a ser mantido à distância para não se correr o risco de contaminação e transformar o que poderia ser um gesto eventual em vício.
Você talvez esteja se perguntando aonde quero chegar com isto. A pretensão é simples. Como sempre, procuro refletir acerca do fazer artístico. Acho admissível, por exemplo, que o artista use a sua forma de expressão para provocar seu espectador, seja para induzir a um estado de alma, uma perplexidade, ao êxtase, até mesmo à repulsa. Isto me parece natural da arte e é um dos aspectos que torna a arte legítima. 
Vejamos a foto que abre este post, por exemplo. Gal Oppido* fez a foto. A despeito da absurda qualidade do trabalho, o motivo também surpreende: o ator Tarcísio Meira** com sua personalidade exposta em todas as marcas do rosto. Duas formas de expressão e dois artistas em harmonia, garantindo ao observador várias "leituras" da mesma fotografia.
Observe o trabalho abaixo do mesmo artista:
Vista da Praça Roosevelt em São Paulo, a partir da SP Escola de Teatro - por Gal Oppido

São tantos elementos inseridos nesta visão singular já a partir do título que, revelado o autor, estamos certos de termos ao nosso alcance a obra de um artista reconhecido como poucos. 
Mas o importante desta reflexão é que, além do objeto cultuado, há o reconhecimento, a legitimidade de quem o produziu conquistada a duras penas, através de muitos anos de dedicação, do cumprimento de todos os ritos que asseguraram a exposição deste talento e a oferta do seus resultados a todos que tiverem acesso à sua arte.
Para não ficarmos somente na visão deste autor, vale como citação "Todo o complexo que comporta a produção, a difusão e a recepção das obras de arte por parte de um público colabora na determinação, enfim, da legitimidade de uma dada produção (material e/ou conceitual) como arte. Detalhes minuciosos, por vezes quase invisíveis estão neste tipo de validação " (Rosane Kaminski). Muito embora o sistema de circulação de bens culturais seja relativamente autônomo, há uma relação direta entre ele e os sistemas de produção. Isto é fácil de entender quando se percebe que a validação da arte se dá a partir da relação entre artistas e outros artistas com a intervenção de outros agentes e da relação com outras obras consagradas pela história da arte. Ratificando este pensamento com a mesma autora citada, "por um lado, há o olhar do teórico especialista em arte, capaz de detectar nas obras os elementos formais e temáticos coerentes com as poéticas do seu tempo. Enquanto estes teóricos desempenham a função de críticos ou mesmo de curadores, por outro lado se destaca também a atuação do historiador, cujo trabalho de documentação e análise colabora para preservar a memória e o sentido de patrimônio artístico dentro do grupo social". 
Ainda que se possa temer a dependência da produção artística e o temor desta dependência dos sistemas de mecenato e patrocínio como cita Pierre Bourdieu, não podemos conferir aos apoiadores, mecenas e patrocinadores a instância com poder exclusivo para legitimar a arte de determinado grupo, artista ou sistema de produção. Cabe a eles incentivar, estimular, propor a avaliação, auxiliar os processos de exposição, sem intervenção direta na produção artística em si. Se isto couber ao poder público, a seus gestores cabe a ação nos limites da sua competência de fomento, difusão ou formação de artistas, sendo esperado nestas relações, a adoção de princípios éticos e respeito aos mecanismos que reconhecem os artistas legitimados na forma de expressão artística requerida. 
Isto significa que não cabe diretamente ao poder público legitimar artistas, mas reconhecer em cada forma de expressão aqueles que reconhecidamente têm notória especialização em cada área e, caso a caso, integrar a rede de suporte às artes.
Ao artista, por sua vez, tendo interesse em difundir-se numa vertente de sua vocação e escolha,deve procurar desenvolver seu trabalho, obedecidas as "liturgias" ou subvertendo-as para tornar-se reconhecido e apoiado pelos agentes, curadores, críticos, historiadores etc. Lembremos sempre que as motivações internas do próprio meio artístico e da transformação da arte e sua produção é que consolidarão o que de fato permanece como instancias legítimas na história da arte.
Tudo isto, pode ser amarrado com uma situação recente no universo da ópera no Brasil. O mundialmente reconhecido diretor de cinema Fernando Meirelles dirigirá uma ópera. Após declarar que não conhece a linguagem, resumiu a inesperada situação como " Um convite feito por engano. Aceitei por irresponsabilidade", e mais, diz ainda “Nunca gostei de óperas. Conheço algumas árias famosas, mas só assisti a cinco montagens na vida”. Tirados os efeitos e, vá lá, o humor das frases (e o habeas corpus preventivo implícito), o que sobra de fato é a expectativa de que faça um bom trabalho e que sua investida no gênero deixe algum residual. Pode ser até que tudo faça parte de um jogo de cena desnecessário e que tudo isto esteja atrelado à intensa divulgação resultante. 
Por outro lado, não se pode atribuir ao cineasta a responsabilidade pela escolha do seu nome. Ele não se colocou à disposição do espetáculo e, tendo sido convidado, certamente viu ali um desafio a resolver e a perspectiva de colocar nos cinemas - sua tribuna conveniente - a sua versão da obra que lhe foi oferecida. Ao ofertar esta visão e possibilidade, atribuindo valor ao resultado cinematográfico, cumprindo os rituais de direitos de intérprete a cantores e músicos e todas as etapas para que se tenha acesso à obra, é possível até que se reconheça aí no futuro alguma contribuição à ópera.
Esta movimentação toda não agradou algumas pessoas que atuam na ópera inclusive levando a manifestações nas redes sociais contrárias à admissão de um neófito auto declarado sem qualquer ligação ou interesse neste tipo de teatro. Esta rejeição a Meirelles à frente de um novo espetáculo se deu muito mais pelo teor das entrevistas e por um grupo relativamente fechado. Possível discussão longa esta, já que vários cineastas internacionais bem sucedidos já se dedicaram à ópera com excelentes resultados e cumprindo os ritos de legitimação usuais. Mesmo no Brasil, em outros momentos, vários diretores já passaram pela ópera, com maior ou menor aceitação e quase sempre sem qualquer reclamação direta, quando muito observações veladas por um ou outro trabalho mal sucedido, pela imperícia na direção de cantores e de coro ou coisas parecidas. Também  são notórios diretores de teatro e ópera que se inseriram naturalmente no cinema e televisão, caminho que me parece até mais natural e seguro dadas as especificidades e dificuldades do teatro e da ópera. 
Finalmente, para o público em geral, me parece, este não é um tema que o motive. As plateias não são sensíveis a estes bastidores, parece-me. Talvez os puristas torçam o nariz para uma ou outra coisa no processo.
Certamente a questão toda não está no diretor em si, mas, por tudo isto que expus acima, pela natureza e origem do convite que foi feito, pelo difícil momento desfavorável para os criadores brasileiros na área e - não se pode ignorar isto - certo desprezo ou deboche que transpareceu na comunicação do novo trabalho. 
Não é fácil olhar a Cultura sob o ponto de vista do último segundo. Sempre a história. A história é que nos dará ou não razão. Felizmente.


* Gal Oppido é fotógrafo, arquiteto, músico e desenhista brasileiro.
** Tarcísio Meira é ator de teatro, cinema e televisão brasileiro. Vale a pena também conhecer o blog dedicado a ele.

terça-feira, 11 de agosto de 2015

Dilemas Contemporâneos da Cultura (95)

Einstein e Marilyn Monroe - cor digital e montagem Montagem Vírgula

Debate recente põe em pauta a necessidade de se preparar professores generalistas (os que dão aula no ensino fundamental de todas as matérias, normalmente formados em pedagogia). O raciocínio, pertinente, é que se um médico passa por estágios de aprendizado para se tornar um especialista, inclusive em clínica geral, estamos longe de oferecer aos nossos professores a oportunidade de se especializarem para o exercício de sua atividade. Confesso que não reúno conhecimentos suficientes nesta matéria e, apesar disto, aqui estou dando um pitaco neste tema. 

Somos assim. Os meios eletrônicos reúnem (desunem) para o bem e para o mal comentaristas em todas as áreas.Para evitar isto, tento não fugir do que me diz respeito.

Na Cultura, precisamos preparar gestores e isto sem qualquer comparação com os médicos ou mesmo com os professores. Não se trata simplesmente de termos pessoas com boa formação (jornalistas, pedagogos, historiadores, músicos, atores, diretores, sociólogos, cineastas etc.) ocupando cargos públicos, mas, independente da origem, profissionais preparados para colocar em prática modelos de gestão inéditos ou não.

Vamos refletir um pouco. Quanto mais próximos do topo, mais os cargos públicos são indicações políticas. Há, portanto, um componente de militância ideológica que é inseparável da natureza do cargo. Isto certamente provoca uma reação em cadeia a definir políticas e modelo de gestão. Nesta ótica, há muito a se ponderar sobre as diferenças regionais, sobre as formas de produção, formação técnica e artística e uma série de indicadores que podem determinar o grau de dificuldade que determinadas sociedades oferecem para a verdadeira apropriação da ação cultural pelos cidadãos.

Como reagir a situações em que decisões de cunho absolutamente pessoal interferem no que será oferecido à população? Afinal dirigentes não são autômatos e assumiram seus cargos com a missão de cumprir papéis que são esperados no poder público. O desafio é como estabelecer o equilíbrio entre programas e níveis de investimento em cada um deles. Assim colocado, parece uma afirmação fluida, sem maiores consequências que o seu conteúdo de leitura direta em si. 


Quero explorar isto um pouco mais. 


O que motiva as decisões tem relação obvia com a formação de cada gestor. Se no entanto, aos atributos do cargo não estiver somada ampla formação e domínio das questões que norteiam o universo contemporâneo da Cultura, teremos resultados aquém do que determinada sociedade poderia obter. Como resumo até aqui, pode-se afirmar que é urgente que se formem gestores e é também papel do Estado, dos partidos, investir nestes mecanismos de aperfeiçoamento no âmbito de seus interesses específicos, lembrando que ao Estado cabe aperfeiçoar servidores de qualquer cor política, digamos assim. E aos partidos preparar quadros que os representem quando a serviço do Estado. 


Trazendo o tema para nossa área foco, se pensarmos de maneira sistêmica, podemos imaginar que o reconhecimento da natureza da produção cultural (acadêmica e popular), dos artistas e grupos envolvidos, da capacidade técnica de realização, dos bens de valor daquela sociedade sejam de caráter material ou imaterial e das relações entre as forças sociais, é fundamental para um ponto de partida facilitador para a inovação.


Esta é a chave concreta. O Futuro não será como era antes* e práticas inovadoras são desejáveis. Se hoje falamos em economia criativa e em inovação, não é por acaso. Trata-se de um imperativo desta nova condição de prepararmos um futuro sabido, numa era em que as incertezas estarão colocadas de forma esmagadora e não se admitirão experimentações com a natureza humana sob o risco de seu extermínio, sem qualquer exagero retórico. 


O fracasso dos sistemas elevam as desigualdades, os extremos de miséria, a falta de acesso a mecanismos de justiça social e a altíssimos níveis de degradação ambiental com toda a sorte de ameaças letais para a humanidade. Some-se a isto a intolerância, a falta de aceitação do diferente e níveis de insatisfação crescentes.


Tal qual a foto colorida com tecnologia digital que ilustra este texto, é bom podermos olhar as mesmas coisas sob outros pontos de vista e com outros elementos que provoquem as nossas capacidades de abstrair. 


Estas provocações são necessárias e auxiliam nossa reflexão. Há limites para a provocação, entretanto. Provocação não é brincadeira com as percepções sociais, por exemplo.


Continuarei no tema amanhã.


* Paul Valéry


quinta-feira, 6 de agosto de 2015

Dilemas Contemporâneos da Cultura (94)

Detalhe do mangá Gen -Pés descalços - de Keiji Nakazawa

Hoje, 6 de Agosto de 2015, comemoramos 70 anos do lançamento da Bomba em Hiroshima. Apesar da forte presença japonesa no Brasil e das nossas relações com a cultura norte americana, pouco se falou a respeito desta triste história.

O mangá Gen - Pés Descalços narrando os dias seguintes à bomba e, através da saga dos sobreviventes de uma família, a história de milhares, já possui centenas de edições, milhões de exemplares em todo o mundo e, entre nós, várias versões de formatos impressos. Gen inspirou inclusive a composição de uma ópera. 

Desde que conheci a primeira publicação (em 4 volumes) me apaixonei pela história, e, reconhecendo o altíssimo teor dramático, identifiquei ali um conteúdo próprio para o teatro e, claro, para a ópera. Quase que ao mesmo tempo, soube numa nota que Gen inspirara filmes, programas de televisão e - pasmem - uma ópera. Durante 16 anos, busquei as partituras sem sucesso. Sempre comentei com pessoas próximas que isto precisa ser olhado, ser encenado, que o teatro precisa dar uma resposta a esta ameaça absurda. Finalmente, em 2014, com a ajuda de uma amiga (*) consegui finalmente "falar" com o compositor Hiroshi Hoshina que, simpático, me enviou as partituras da ópera (criada em 1981, com libreto de Takanori Shimizu) e uma cópia da versão encenada da ópera. O maestro Hiroshi se dispôs a auxiliar no que fosse necessário para materializar o projeto de encenar Gen no Brasil, mas, apesar dos esforços de dois ou três anjos da guarda, não foi ainda desta vez que veremos este título por aqui, por exemplo com cantoras como Eiko Senda e Massami Ganev - naturais participantes pela origem e pela excelência vocal - entre outros tantos cantores brasileiros que poderiam compor este elenco. Talvez num futuro próximo. 

As reflexões sobre este triste episódio da história humana não pararam por aqui, entretanto (nem mesmo o desejo de montar a ópera). 

Precisamos ter a consciência da necessidade de paz. O mundo precisa de paz. Precisamos traçar caminhos com urgência para evitar que estes absurdos aconteçam novamente. Se olharmos tudo o que aconteceu até aqui e a força com que os regimes totalitários proliferaram no século XX, não podemos descansar. Bastaram 45 segundos entre apertar um botão e exterminar, de imediato, 80.000 pessoas, alguns simplesmente evaporados pela força aterradora do artefato. Mais de 150.000 morreram nos dias que se seguiram. Milhares sucumbindo pela dor, com sede, fome, com as peles se soltando do corpo, vagando ensanguentados pelas ruínas da cidade. Até hoje não se sabe ao certo quais os efeitos reais naquela população e os números, absurdos em si, variam para outros números ainda mais absurdos. 

A bomba, com cerca de 60 quilos de urânio, recebeu o carinhoso apelido de Little Boy. 

No dia 9 de Agosto de 1945, era jogada a segunda bomba. Desta vez, com plutônio e com o nome de código Fat Man. Era para ser Kokura, mas detalhes técnicos, anteciparam a ação para a cidade de Nagazaki. Daqui há três dias, os japoneses também chorarão os mortos de Nagazaki. 

Foi realmente necessário? Os equívocos de ambas as partes levaram a um resultado que melhorou a humanidade? Ou passamos a viver (conviver) com este monstro terrível que cumpre qualquer ordem e mata milhões com o dedo indicador? Que pessoas são essas que tiram vidas com um estalar de dedos? Qual o sentido de tudo isto?

A arte precisa refletir sobre este estado de coisas e, no Brasil, é necessário que estas discussões façam parte das agendas, mesmo porque sem exercitarmos esta, como conseguiremos ampliar a nossa autocrítica aos nossos próprios equívocos?


(*) mantenho-a incógnita por respeito à sua privacidade.

sábado, 8 de novembro de 2014

'X (2)


Cover
“Guto, de quê é a sua parte?”, gritou ela. “Ô, meu saco, estou lá preocupado com a minha parte?”, pensou ele. “Qualquer coisa...”, disse. “Não senhor, escolhe”, gritou ela de novo. “Pizza é pizza. Serve qualquer coisa”, tentou. “Você diz isso toda vez. A minha é de margherita e você gosta de calabresa. Sempre reclama”, insistiu ela. “Meu bem, escolhe o que você quiser. Preciso publicar estas coisas no meu blog e...” Ela não deixou que terminasse a frase, completando: “... e você me interrompe uma hora com pizza, outra com aquilo ou não sei o quê... Tudo bem” – complementou, falando ao telefone – “... manda uma margherita grande”, concluiu. “Dá para pedir meia portuguesa?”, gritou ele. Ela riu dando de ombros, repetiu o pedido e foi ver o resto da novela, exatamente na hora em que, pela centésima vez na semana, a gostosa histriônica, como Augusto sempre dizia, recusando-se a lembrar o nome da atriz, mostrava as coxas estonteantes ao subir os degraus da residência de sua tia malvada.
“Esta mulher é uma delícia, cara”, comentou enquanto girava a embalagem vazia na mão esquerda. “Chegou a tua, Kid. Solta o gás que tem mais doze na espera”, gritaram do balcão. “Moleza: uma margherita com portuguesa, sem refri, dinheiro trocado, uns dois reais de caixinha completando os vinte que vou juntar hoje, pouco menos de dois quilômetros, uma roda lá, outra cá.” Colocou a redonda embalada em caixinha de papelão na embalagem térmica, com o vale-pizza a cada dez na parte de cima. Checou a comanda com o endereço, ligou a moto – a melhor coisa que fez foi investir no novo modelo 2014-2015, com partida elétrica, em trinta e seis parcelas e seguro total –, pisou leve com o pé esquerdo na alavanca de câmbio, soltando a embreagem com a mão direita e, acelerando devagar, partiu, mudando rapidamente para segunda, terceira, sem balançar muito – ninguém gosta de pizza misturada. Virou à direita na Plínio Sampaio, torcendo para voltar em menos de dez minutos. Chegou fácil na rua. Já estivera lá mais de uma vez, inclusive naquele endereço  – não era lá que tinha a branquinha de camiseta e peitinho duro? Apesar de escura, era uma rua simpática, de mão dupla, com alguns carros estacionados aqui e ali, muitos sobradinhos de parede e meia, além de algumas poucas casas térreas. A de hoje era uma dessas com portão eletrônico, número de cerâmica e campainha barulhenta, sem cachorro.
“E a pizza?”, perguntou. “Já deve estar chegando”, comentou ela sem muita convicção. “Espero que chegue logo”, disse. “Você está com fome?”, perguntou. “Não. Só quero me livrar logo”, respondeu Guto. “Credo, por que você fala desse jeito?”, disse ela fazendo cara de nojo. “Que é que tem? Pizza não é comida...”, comentou, sabendo que aquilo a irritava profundamente. “É o quê, então?”, perguntou, já sabendo a resposta. “Pizza é pizza, ora!”, disse, dando uma risada debochada.
“O que vocês querem? Não tenho grana, cara”, falou, tentando mostrar segurança. “Já entregou a pizza?”, perguntou o maior dos três. “Não. Acabei de chegar, vocês não viram?”, disse, tentando disfarçar o medo. “Deixa eu ver”, ordenou, aproximando-se e tentando pegar a embalagem. “Não zoa, não, cara. Eu não posso perder o emprego. Esta é a terceira vez na semana que alguém fica zoando comigo”, falou, sentindo o corpo inteiro tremer. “Não estou zoando. Se bobear, descarrego em você, tá?”, disse, mostrando o revólver na mão esquerda. Bico calado e toca a campainha.”
“Você não vai atender?”, perguntou. “Ah, meu bem, vai lá você, vai”, disse ela. “Puxa vida, pega você, vai... Preciso publicar o material do blog ainda hoje”, comentou, continuando a digitar.
“O pessoal está demorando, xará...”, disse, nervoso. “Calma aí, estão chegando.”
“Quem é?”, perguntou ela. “Pizza”, disse ele, antes que ela abrisse o portão.
“Guto...”, disse ela quase chorando. “O que foi? Quem... O que é isso?”, perguntou assustado, levantando os olhos da tela do computador. “Um assalto, cara; e o melhor é não reagir nem olhar para a cara da gente”, disse o mais alto dos três. “Você vigia o entregador e ele. Eu levo a mulher e você começa a levar as coisas para o carro deles”, complementou. O entregador sentou-se no chão. Guto, em frente ao computador. Um deles ficou ao seu lado, revólver na mão, quieto. O outro, o maior deles, levava a mulher perguntando onde estava isto, o que era aquilo. O último levava para o carro televisão, rádio, toca CD e DVD, a jaqueta de couro...
“O que é isso?”, perguntou. “É um blog”, falou. “Legal... Tem um chegado meu que faz um blog do Iron Maiden”, comentou, aproximando-se da tela e movimentando o mouse. “Iron Maiden?”, disse Guto. “É. Da hora... Beleza!”
“Deu. Vamos embora. Pega o notebook e vamos”, mandou o maior dos três. “Deixa aí”, disse o outro, levantando o motoboy pelo braço. “Como, deixar aí? É um Toshiba de uns oito paus”, falou, irritado. “Não vamos estragar a do cara, mano... O blog é legal.”

“Não chora. Eles já foram”, disse Guto. “Eles levaram até meu CD novo da Maria Rita!”, falou ela, chorando. “Chora, não. É pirata.”

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Dilemas Contemporâneos da Cultura (93)


Motivo
Cecília Meireles (7.11.1901 - 9.11.1964)

Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.

As armas e os Barões assinalados
Que da Ocidental praia Lusitana
Por mares nunca de antes navegados
Passaram ainda além da Taprobana,
Em perigos e guerras esforçados
Mais do que prometia a força humana,
E entre gente remota edificaram
Novo Reino, que tanto sublimaram;



E também as memórias (pouco gloriosas)
Daqueles Reis que foram dilatando
A Fé, o Império, e as terras viciosas
De África e de Ásia andaram devastando,
E aqueles que por obras valerosas
Se vão da lei da Morte libertando,
Cantando espalharei por toda parte,
Se a tanto me ajudar o engenho e arte.


Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
— não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
— mais nada.

(*) conheça Mariam Paré  aqui.

Ópera em Movimento (7)

Laura Aimbiré e Gilberto Chaves
em apresentação de Carmen, no formato Ópera Curta

O convite de hoje é para que você solte seus credos e ansiedades com uma ópera muito conhecida, porém um desafio enorme para quem dirige e para quem interpreta exatamente por isto.

Divirta-se com o programa Ópera em Movimento da Radio e Televisão Cultura que tive o prazer de criar e apresentar. Nesta edição, Carmen, de Georges Bizet.


quarta-feira, 5 de novembro de 2014

'X - (I)

Retorno
por Cleber Papa *

O dia começou uma hora mais tarde, coisa do verão.
Os pingos começaram grossos e alternados de repente. Um, dois, três, aumentando gradativamente a frequência de precipitação até se tornarem um coro aquático com milhões de gotas unidas umas as outras, caindo em sequência estonteante.
Hummm... O cheiro de terra molhada... Ele sorriu, deixou sua cara à água. O ruido na testa e em tudo não lhe tiravam a percepção da grandiosidade daquela chuva. Sentiu no peito um estrondo de juventude, uma vontade de abraçar as árvores, de correr. Foi assim mesmo que aconteceu.
Na praça, Fernando parou onde lhe deu vontade. Começou a gritar alucinado:
- Viva o Governador... Viva o Governador... Viva o Governador.
Até que um dos passantes se aproximou:
- Tá maluco, Zé?
- Eu? Maluco? Não era ele o culpado da seca?

(*)Bem vindo ao Apóstrofo X, onde, sem regras pré-definidas e conforme o tempo e vontades desde blogueiro, você encontrará crônicas, cenas esquecidas em gavetas, experiências e vivências cotidianas. Espero que você goste.