sábado, 8 de novembro de 2014

'X (2)


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“Guto, de quê é a sua parte?”, gritou ela. “Ô, meu saco, estou lá preocupado com a minha parte?”, pensou ele. “Qualquer coisa...”, disse. “Não senhor, escolhe”, gritou ela de novo. “Pizza é pizza. Serve qualquer coisa”, tentou. “Você diz isso toda vez. A minha é de margherita e você gosta de calabresa. Sempre reclama”, insistiu ela. “Meu bem, escolhe o que você quiser. Preciso publicar estas coisas no meu blog e...” Ela não deixou que terminasse a frase, completando: “... e você me interrompe uma hora com pizza, outra com aquilo ou não sei o quê... Tudo bem” – complementou, falando ao telefone – “... manda uma margherita grande”, concluiu. “Dá para pedir meia portuguesa?”, gritou ele. Ela riu dando de ombros, repetiu o pedido e foi ver o resto da novela, exatamente na hora em que, pela centésima vez na semana, a gostosa histriônica, como Augusto sempre dizia, recusando-se a lembrar o nome da atriz, mostrava as coxas estonteantes ao subir os degraus da residência de sua tia malvada.
“Esta mulher é uma delícia, cara”, comentou enquanto girava a embalagem vazia na mão esquerda. “Chegou a tua, Kid. Solta o gás que tem mais doze na espera”, gritaram do balcão. “Moleza: uma margherita com portuguesa, sem refri, dinheiro trocado, uns dois reais de caixinha completando os vinte que vou juntar hoje, pouco menos de dois quilômetros, uma roda lá, outra cá.” Colocou a redonda embalada em caixinha de papelão na embalagem térmica, com o vale-pizza a cada dez na parte de cima. Checou a comanda com o endereço, ligou a moto – a melhor coisa que fez foi investir no novo modelo 2014-2015, com partida elétrica, em trinta e seis parcelas e seguro total –, pisou leve com o pé esquerdo na alavanca de câmbio, soltando a embreagem com a mão direita e, acelerando devagar, partiu, mudando rapidamente para segunda, terceira, sem balançar muito – ninguém gosta de pizza misturada. Virou à direita na Plínio Sampaio, torcendo para voltar em menos de dez minutos. Chegou fácil na rua. Já estivera lá mais de uma vez, inclusive naquele endereço  – não era lá que tinha a branquinha de camiseta e peitinho duro? Apesar de escura, era uma rua simpática, de mão dupla, com alguns carros estacionados aqui e ali, muitos sobradinhos de parede e meia, além de algumas poucas casas térreas. A de hoje era uma dessas com portão eletrônico, número de cerâmica e campainha barulhenta, sem cachorro.
“E a pizza?”, perguntou. “Já deve estar chegando”, comentou ela sem muita convicção. “Espero que chegue logo”, disse. “Você está com fome?”, perguntou. “Não. Só quero me livrar logo”, respondeu Guto. “Credo, por que você fala desse jeito?”, disse ela fazendo cara de nojo. “Que é que tem? Pizza não é comida...”, comentou, sabendo que aquilo a irritava profundamente. “É o quê, então?”, perguntou, já sabendo a resposta. “Pizza é pizza, ora!”, disse, dando uma risada debochada.
“O que vocês querem? Não tenho grana, cara”, falou, tentando mostrar segurança. “Já entregou a pizza?”, perguntou o maior dos três. “Não. Acabei de chegar, vocês não viram?”, disse, tentando disfarçar o medo. “Deixa eu ver”, ordenou, aproximando-se e tentando pegar a embalagem. “Não zoa, não, cara. Eu não posso perder o emprego. Esta é a terceira vez na semana que alguém fica zoando comigo”, falou, sentindo o corpo inteiro tremer. “Não estou zoando. Se bobear, descarrego em você, tá?”, disse, mostrando o revólver na mão esquerda. Bico calado e toca a campainha.”
“Você não vai atender?”, perguntou. “Ah, meu bem, vai lá você, vai”, disse ela. “Puxa vida, pega você, vai... Preciso publicar o material do blog ainda hoje”, comentou, continuando a digitar.
“O pessoal está demorando, xará...”, disse, nervoso. “Calma aí, estão chegando.”
“Quem é?”, perguntou ela. “Pizza”, disse ele, antes que ela abrisse o portão.
“Guto...”, disse ela quase chorando. “O que foi? Quem... O que é isso?”, perguntou assustado, levantando os olhos da tela do computador. “Um assalto, cara; e o melhor é não reagir nem olhar para a cara da gente”, disse o mais alto dos três. “Você vigia o entregador e ele. Eu levo a mulher e você começa a levar as coisas para o carro deles”, complementou. O entregador sentou-se no chão. Guto, em frente ao computador. Um deles ficou ao seu lado, revólver na mão, quieto. O outro, o maior deles, levava a mulher perguntando onde estava isto, o que era aquilo. O último levava para o carro televisão, rádio, toca CD e DVD, a jaqueta de couro...
“O que é isso?”, perguntou. “É um blog”, falou. “Legal... Tem um chegado meu que faz um blog do Iron Maiden”, comentou, aproximando-se da tela e movimentando o mouse. “Iron Maiden?”, disse Guto. “É. Da hora... Beleza!”
“Deu. Vamos embora. Pega o notebook e vamos”, mandou o maior dos três. “Deixa aí”, disse o outro, levantando o motoboy pelo braço. “Como, deixar aí? É um Toshiba de uns oito paus”, falou, irritado. “Não vamos estragar a do cara, mano... O blog é legal.”

“Não chora. Eles já foram”, disse Guto. “Eles levaram até meu CD novo da Maria Rita!”, falou ela, chorando. “Chora, não. É pirata.”

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