segunda-feira, 5 de abril de 2010

Dilemas contemporâneos da Cultura (9)

A primeira saída
Pierre Auguste Renoir
A maior estrela brasileira da cultura no exterior é o barítono Paulo Szot.
Repetindo: a maior estrela brasileira da história recente é um cantor de ópera.

Amanhã não cairão centenas de e-mails na minha caixa postal discutindo o mérito inquestionável das duas afirmativas acima.

Paulo Szot não está cantando melhor agora. Antes de se tornar uma estrela internacional, ganhador do Tony Awards, sucesso de crítica "lá fora", ele já era um excelente cantor, profissional e colega, sofrendo aqui as mesmas dificuldades de espaço de trabalho que outras dezenas de igual valor e qualidade. A OSESP, que reconhecemos merecidamente como nossa melhor orquestra, nunca recebeu Paulo Szot. (*)

Sua estréia na mítica Metropolitan Opera House não se deu com um papel daqueles que estávamos habituados a ve-lo/ouví-lo nos teatros brasileiros como seria óbvio. Não. Pelo contrário, os programadores do MET tiveram a ousadia e apostaram na qualidade ao contratá-lo para O Nariz - um papel complexo, para um bom ator e cantor.
Sem qualquer possibilidade de diminuir um milionésimo sequer suas qualidades, conversava com outra colega - fã de carteirinha - e nos questionamos sobre quantos outros Paulos temos no Brasil.
Se nem todos são iluminados como ele a quem devemos aplaudir sempre, o que fazer para dar a dimensão correta aos nossos cantores? Como devemos sacolejar os programadores dos teatros a dar espaços aos artistas de estatura nas poucas oportunidades que temos nesta fase de transição? (**)
Na minha maneira de entender o problema, devemos privilegiar a qualidade e sermos radicais nisto. Para isto, precisamos dar espaço de trabalho aos nossos profissionais da ópera e criar o máximo de oportunidades para que se mantenham ativos.
Ao mesmo tempo, é necessário desenvolver as "vozes jovens", criando condições para que cantem aquilo que suas condições fisicas e técnicas permitam. Trocando em miúdos, sopranos não são todas iguais e "vozes jovens" cantando papéis adequados para "vozes maduras" é um desastre. Qualquer um que tenha um mínimo de responsabilidade com o canto sabe que a inadequação de papéis estraga a voz. Como se diz na analogia, obrigar o cantor jovem a cantar papéis que só poderia cantar dez, quinze anos mais tarde, é fazê-lo gastar o "capital" e não os "juros".
Feito este parenteses, fica mais uma indagação.
Precisamos estar atentos à qualidade de nossos profissionais. Já avançamos bastante no Brasil em várias áreas da cultura, mas ainda é muito pouco.
Não serão governos que resolverão estes problemas, pois são apenas parte da solução. Nós, profissionais, devemos, com urgência, criar mecanismos de proteção de nossos valores e nos posicionarmos criativamente, com as parcerias certas para avançarmos de forma segura nas nossas carreiras.
Não há como desenvolver sem participação, responsabilidade, visão de futuro, sustentabilidade e ética.
(*) fica uma sugestão para o Arthur Nestrovsky montar uma série para os solistas brasileiros, com direito a gravação, dvd, programa de tv etc. etc.
(**) tenho a convicção de que estamos vivendo o final de uma fase de transição.

quarta-feira, 31 de março de 2010

Dilemas contemporâneos da Cultura (8)

Personagens da peça (Kabuki) Matsutaka temari fujitsuroku - 1855

O financiamento à produção cultural é o principal dilema não resolvido na Cultura.
Não existe mágica.


De um lado há necessidade de politicas públicas e recursos também públicos para programas decorrentes.De outro consumidores de Cultura dispostos a pagar (com dinheiro privado) pelo que recebem: cidadãos, entidades e empresas. Nesta faixa, os interesses são distintos entre si e os volumes investidos idem. Para atender estes segmentos vale a lógica de mercado, ou seja , a adoção de ferramentas corretas de marketing para motivar adequadamente estas platéias para os bens culturais oferecidos. Isto signfica que há espaço e público para a maioria dos bens cuja lógica seja a bilheteria.


Existem inúmeros cases e relatos de bens culturais tanto "populares" quanto "eruditos" que tiveram recursos públicos e privados em percentuais distintos, ora prevalecendo um modelo ou outro.


Há, portanto, uma brecha, uma linha de raciocínio e de planejamento que pode orientar os planos de negócios da produção cultural.


Este é um caminho saudável para a sustentabilidade dos negócios.


Continuo com o tema amanhã e falarei das variáveis politicas no processo.

segunda-feira, 29 de março de 2010

Carlos Gomes no mapa do Brasil (10)


Imagens da Praça Carlos Gomes - Curitiba - Paraná
por Joatan Berbel
"Isto, esta edificação com estas colunas leva o nome de stoa. Aquela parte interna ali, você vê? Era reservada aos comerciantes, aos banhos. Daqui da stoa se observa a ágora, esta grande área delimitada por estas construções. Uma espécie de praça, aberta, livre, para o cidadão e o debate democrático. Estas colunatas da stoa têm uma divisão, está vendo? A parte superior possui estes desenhos e a parte de baixo é assim mais lisa, porque nela as pessoas se encostavam, colocavam os pés. Sendo lisas, não eram deformadas pelo uso diário. Das stoas derivam os estóicos, os pensadores do logos (a razão universal) a ordenar todas as coisas e através do que o mundo é um todo harmônico (kosmos). Você vê ali a acrópole".
Com este ritmo acelerado, sábio e didático, olhando tudo e descrevendo além deles, com o mesmo entusiasmo* da primeira vez, vi e ouvi Cyro Del Nero descrevendo as maravilhas de Athenas, na Grécia. Numa de nossas viagens juntos à Bulgária, onde ele cenografava e eu produzia O Guarani, de Carlos Gomes, passamos pela Grécia no retorno ao Brasil.
Carlos Gomes teve um bom caminho na Bulgária** e certamente relembrado entre conversas que tivemos na ágora grega.
Não podemos dizer o mesmo da Praça Carlos Gomes em Curitiba, de onde, decepcionado, Joatan Berbel me enviou algumas fotos mostrando o descuido com coisas que são essenciais no espaço urbano.
Por mais sensível que o fotógrafo tenha sido ao encontrar no lixo um violino e declaração de amor, o entorno mantinha as lamentáveis consequências do descaso com o homem como já se tornou rotina no dia-a-dia das cidades.
Não se trata de responsabilizar apenas o poder público pelo mendigo enrolado nos seus trapos e dormindo sob uma árvore em tarde plena, ou pelos garotos consumindo crack, ou pelos consagrados carrinhos de pipoca de higiene suspeita.
São imagens corriqueiras que nos servem de espelho para o descaso da sociedade. O poder público é a ponta dinâmica deste processo. É sua responsabilidade tanto quanto é do cidadão ou cidadã que colocou as roupas para "quarar" na grama verde.

Lembro-me da Praça Carlos Gomes em Curitiba de alguns anos atrás. Uma como tantas, agradável, bem arborizada. Se hoje está degradada é compreensível, mas não aceitável.
As praças e os homens precisam de cuidados senão se deterioram, transmutam em outras coisas.
As praças deixam de ser espaços de convivência saudável, de diálogos de Cultura e - no caso da Carlos Gomes - de memória e homenagem. Os homens... bem, estes vão perdendo o brilho, a essência, a capacidade de ver o belo e, pouco a pouco, sem que percebam, passam a um estado de barbárie de dificil retorno.
* enthusiasmós - com deus interior
** Rosana Caramaschi e eu produzimos três títulos de Carlos Gomes em co-produção com a The Sofia National Opera: Il Guarany, Fosca, Maria Tudor.

Dilemas contemporâneos da Cultura (7)

Representation at the Theatre des Varietés
Jean Béraud

Bens Culturais são todas as formas de expressão da identidade de um povo e de sua humanidade.

Esta é uma definição para se repetir sempre. Milhares de vezes, rabiscando o que é forma, o que é expressão, identidade e por aí vai. Aliás, um exercício tentador.

A diferença entre arte erudita e arte popular reside no grau de alfabetização necessário para compreendê-las.

As artes populares trabalham com o universo conhecido, com a repetição, enquanto que as artes eruditas se orientam pela provocação de níveis alternativos e complementares de leitura e de abstração. Quanto mais uma determinada arte dita popular acrescentar de códigos de leitura, mais se aproxima da erudição.

Quando se fala em promover o acesso à Cultura Erudita comete-se um erro de origem: um cidadão não alfabetizado numa determinada linguagem não se aproximará dela. Considerando que o acesso existe uma vez que artes eruditas estão "expostas" nos seus lugares, a palavra "acesso" ganha o conteúdo de proximidade, facilidade de transito ou coisa parecida. Melhor seria usar como terminologia promover a iniciação à Cultura Erudita entendendo que isto significa promover o direito à alfabetização em determinada linguagem.

Ao insistimos na necessidade de formar pessoas e ensinar a pessoas o que música, pintura, ópera, dança, amplia-se o exercício dos seus direitos, inclusive de escolha.

Neste sentido, as instituições de comunicação de massa são cruéis, pois não avançam no direito ao conhecimento amplo e isto é cerceamento do direito.

Ora, se o cidadão não adquire outros níveis de leitura, ele jamais entenderá a importância de perpetuar as suas raízes culturais, um ciclo vicioso de difícil ruptura, já que não perceberá claramente sua realidade, seu papel social, terá uma visão limitada e corrompida na medida em que tenderá a desejar apenas o que o atende diretamente.

Convenhamos que seria uma lástima para o pais que deseja instituições sólidas, com valores sociais, políticos e econômicos que dêem sustentabilidade ao nosso futuro.

quarta-feira, 24 de março de 2010

Dilemas contemporâneos da Cultura (6)

At the Loge
Mary Cassatt


  • Ano eleitoral no Brasil.
  • Para nós da Cultura será determinante a visão de cada candidato a respeito de nossa atividade e sua capacidade de apoiar de forma decisiva as nossas demandas futuras.
  • O financiamento da atividade cultural é dependente do poder público e o setor não conseguiu desenvolver mecanismos de sustentabilidade.
  • Várias pendências deverão ser resolvidas pelos próximos presidente, governadores, deputados e senadores: fortalecer e aperfeiçoar a Lei Rouanet, as PEC relativas às dotações orçamentárias, planos e programas estruturantes para os vários setores da Cultura.
Quatro frases que dão frio na barriga. Hora de abrir os olhos, pois a situação é grave.

terça-feira, 23 de março de 2010

Carlos Gomes no mapa do Brasil (9)

Estudo de Ópera - Lohengrin
by Arthur Thiele
Richard Vagner descreve na partitura de Lohengrin que uma pomba branca aparece anunciando a volta de Gottfried, irmão de Elza e principe de Brabanti. A tal pomba é omitida em muitas sinopses e sequer é mencionada em algumas montagens.

Quando dirigi a ópera Lohengrin no Teatro Municipal de São Paulo, sob a regência do Maestro Ira Levin, uma das decisões que tomei foi assumir a pomba como uma metáfora cristã do Espírito Santo.
Não importam aqui os detalhes de como cheguei a isto, mas o fato é ter percebido com maior força que o Espírito Santo tem uma íntima ligação com o cristianismo Português e, por extensão, praticado no Brasil com a mesma devoção. Esta prática, diferente do foco e até do credo em outros países cristãos, também caracteriza alguns modelos de comportamento, de relações, de entendimento dos seres à volta e várias outras coisas. Um exemplo disto são as festas do Divino que acontecem nos estados Brasileiros e nos países de língua portuguêsa com grandes semelhanças estruturais e até mesmo como um pingente reproduzindo a imagem do pombo/pomba, popularizado atualmente por uma novela de televisão.

Tão forte é a tradição da terceira pessoa da Santíssima Trindade no Brasil que um estado recebeu o nome de Espírito Santo.

Pois no Espirito Santo, em visita ao povoado de Cricaré, o Padre jesuíta José de Anchieta, no dia de São Mateus, levou à mudança do nome da que seria a cidade de São Mateus, onde ainda hoje se vêem as ruínas da Igreja Velha.
Traira, piaba, bagre, robalo, piau e cará, para quem gosta, são peixes deliciosos. Mas também são nomes de rua na cidade de São Mateus, no Estado do Espírito Santo.
Passando por qualquer destas ruas, é possivel chegar à Rua Pitu e, por ela, dobrando à direita ou à esquerda, dependendo do sentido de direção, toma-se a Rua Carlos Gardel.
Não me perguntem porque, mas é pelo tango que se chega às Ruas Villa-Lobos, Luiz Gonzaga, Franscisco Alves e também - claro - à Rua Carlos Gomes. Todas num condominio residencial muito agradável na simpática e histórica cidade.

O que tudo isto tem a ver com o início deste post?

Bem, em Napolis, na Itália, estreou Lohengrin, de Richard Wagner, na mesma estação em que FOSCA, de Carlos Gomes, estreou no Teatro Alla Scala de Milão e esta coincidência criou várias confusões para o nosso compositor. Para conhecer melhor esta história, é bom ler o livro do Marcos Góes "Carlos Gomes - uma força indômita". Se preferir, uma boa idéia é ir a Milão e comprar a edição italiana de "Carlos Gomes - un pioniere alla Scala, do mesmo autor. Boa leitura.

segunda-feira, 22 de março de 2010

Carlos Gomes no mapa do Brasil (8)

Banda da Associação Lira Carlos Gomes
Estância - Sergipe - Brasil

É provável que o José Felix e Claudemiro Xisto tenham dormido pouco naquela noite. Às 5 da manhã do dia 3 de Outubro de 2010, o maestro Claudemiro já estava à frente da banda para iniciar as comemorações dos 130 anos da Associação Lira Carlos Gomes* que durariam o dia inteiro pelas ruas da cidade de Estância, no Estado de Sergipe.

Às 19 horas, foi celebrada uma missa na Igreja Nossa Senhora do Rosário e, em seguida, na sede da Associação, seu presidente José Felix e os demais sócios receberam os amigos para um coquetel em que todos projetaram os melhores desejos de continuidade para a banda, um dos orgulhos da cidade.

Tocar nas ruas de Estância em Sergipe é uma satisfação dos músicos da Lira Carlos Gomes.

Com toda a certeza, seria para eles motivo de muita satisfação poderem um dia tocar na Rua Carlos Gomes, na cidade de Estância Velha, no Rio Grande do Sul, onde os nomes se unem pela memória e reconhecimento ao compositor da ópera Salvador Rosa.

Estância Velha desenvolveu-se em torno do Rio dos Sinos com a instalação da Real Feitoria do Linho Cânhamo para a Coroa Portuguesa onde se produzia o cânhamo, matéria prima para os cordames dos navios. Como isto não deu muito certo, as terras acabaram distribuidas aos primeiros imigrantes alemães que chegaram ao Brasil e se instalaram inicialmente na cidade de São Leopoldo. Entre eles, Mathias Franzen - um sapateiro alemão - um dos pioneiros onde seria a cidade de Estancia, emancipada em 1959, deu origem à vocação de fabricar calçados da região.

E por falar em São Leopoldo, é bom lembrar que as primeiras 39 familias alemãs chegaram à cidade em 1824 formando o que se chamou de Colônia Alemã de São Leopoldo. A cidade é reconhecida como o marco inicial do Vale do Rio dos Sinos e, como seria natural imaginar, lá também a Banda de Estância no Estado de Sergipe, poderia se apresentar caminhando pela Rua Carlos Gomes, uma outra homenagem de São Leopoldo ao Tonico de Campinas - apelido pelo qual Gomes também foi conhecido.


*agradecimentos a Rossevanya Andrade, da Orquestra Sinfônica de Sergipe, que me contou e enviou material sobre a Associação Lira Carlos Gomes.