by Aubrey Beardsley
É incomum diretores cênicos
comentarem sobre o trabalho de outros diretores. Este dilema é um tabu
divertido, compreensível pela simples razão de que não é dos diretores o
exercício da crítica, muito embora não se subtraiam dos críticos a
possibilidade de exercerem atividades correlacionadas à sua área de ação. Um
dilema ético e moral, digamos. Apesar disto, seria aceitável que a autoridade
ética e moral de quem sempre evitou ferir esses princípios conferisse um habeas corpus preventivo para que uma
vezinha só pelo menos o exercício crítico pudesse ser feito. No meu caso, não daria
certo. Não confio nesta história de autoridade, menos ainda se ética e moral. Mesmo
assim, em se tratando de Salomé, é incontrolável deixar de exprimir
publicamente minha opinião (pronto, mais uma fadinha louca se suicidou
enfiando uma caneta bic no ouvido, não é, Dani?).
Para o bem das fadinhas loucas, será uma impressão e não um palpite.
Sempre gostei - muito - de Salomé, a peça
de Oscar Wilde. A música de Strauss na ópera homônima é arrebatadora (isto
significa que gosto, tá?). Em pelo menos três oportunidades, inclui a leitura
de trechos de Salomé em espetáculos que escrevi e dirigi. A densidade de conteúdo
da personagem extrapola a leitura rasa de ser uma menina mimada, cópia
espelhada da mãe, a redentora feminina da família, o ícone transverso da
religiosidade explicita de Jochanaan ou coisas do tipo. Há uma amalgama inseparável
resultante da presença de Herodes, Herodias, Jochanaan e Salomé. A natureza
destas novas figuras criadas é cativante. Mas, esta pode ser uma longa conversa e por
ora deixemos assim.
Enquanto conversava com o André
Heller-Lopes após a apresentação da Salomé que ele dirigiu no Municipal do Rio
de Janeiro, me ocorreu que deve existir um Complexo de Salomé. Uma manifestação
psíquica em que alguém portador da síndrome, não conseguindo ser “amado” –
mesmo que nada tenha feito para isto ou não tenha qualquer atributo que o leve
a ser amado – corta a cabeça de um, de dois, de tantos quantos forem visíveis à
sua frente. Isto feito, o portador abraça a carcaça imaginária de suas vítimas
e, solitário, tem prazeres indescritíveis em meio ao sangue também imaginário
que corrói seu corpo pouco a pouco disforme, transformando seus miolos em uma
gosma inoperante que só ele não percebe.
Uau!
Não conversei com o André sobre
isto. Aliás, fadinhas suicidas sempre que alguém resolve dar pitaco sobre o
trabalho alheio, e banheiras de sangue de cabeças decapitadas são assuntos para
longas e divertidas conversas. No encontro do Rio, só falamos sobre a deliciosa
Salomé que ele dirigiu. Como lhe disse, a solução que ele achou para os judeus
só é resultado de quem é culto e tem a maturidade do métier. Gostei. Para dirigir Salomé precisa ter as duas coisas. Sem
isto, a morte de Nahaboth é insossa. Já vi esconderem Herodias durante a dança
dos sete véus, como se a mãe não suportasse ver a cena. André a coloca do lado
esquerdo do palco (o nosso esquerdo teatral) exatamente para que se remoa nervosamente
enquanto corre a coreografia de Eric Frederic (bravo!). Do mesmo modo que se
percebe o diretor, nota-se o bom coreógrafo onde gestos desnecessários inexistem.
Uma montagem simples, refinada, inteligente.